quarta-feira, 31 de março de 2010

Ou Seu Dinheiro de Volta


Sorria, é o que dizem. Levite,
se puder. Esqueça toda sua carga negativa.
Palavras bonitas. Verde. Esperança. Céu.
Rezar. Todos rezando, orando, fazendo
a sua parte, cavando seu buraquinho.
Todos comendo queijo, por dentro
do grande segredo. Todos somos
um. De mãos dadas. Somos um.
Como ser feliz? Emagreça. Emagreça
em sete dias. Pensamento positivo
atrai coisas positivas. Pensamento
positivo afasta gordura. Chegou um
cheque pelos correios. Eu te vi tão
zen. Eu te vi fazendo ioga. Eu provei
o teu placebo. E não é que funcionou!
Hoje contribui com cinco reais. São
as crianças com câncer que pedem mais.
Vamos ver novela. Vamos ver amor e
romance. Mocinhos e mocinhas no maior
clima. Vilões no xadrez. Pegou o buquê?
Amanhã é minha vez? E a lipo? Se sente
bem assim? Acho que perdi parte de mim.
Me sinto bem melhor.

Mares e marés


Em meio às conchas
Lá vem ela.
És pura maresia.
És bela, és bela.

Dos lagos abissais,
Ela vem e me traz
A pérola mais brilhante
De uma ostra flutuante.

Ainda perplexo,
Em tuas escamas
Eu vejo meu reflexo.

Largo a boia
E o castelinho de areia.
Corro até a margem.
Lá vem minha sereia.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Mudo


Nada muda. Sua Coca-Cola
não muda. Nem o assento
da escola muda. Nada muda.

Nem o perfume da senhora
muda. Nem o aperto na sua
gola muda. Nada muda.

Nem o estampido da pistola
muda. Nem o amor de outrora
muda. Nada muda.

Nem a curva em suas costas
muda. Nem o tique-taque das horas
muda. Nada muda.

Nem mesmo sua bermuda muda.
nem o cacho de uvas muda. Nada
muda.

A vida continua sendo muda, porque,
estranhamente, nada muda.

Who?


Eu sou sempre o coelho que
se esconde na cartola.
Eu sou alguém imaginado
o mundo lá fora.
Eu sou o ardente desejo
se alimentando do indesejável.
Eu sou o trem que para na mesma
estação.
Eu sou a ferrugem, a corrosão.
Eu sou um mendigo sem esperanças.
Eu sou a lança que nunca encontra o alvo.
Eu sou o homem eternamente calvo.
Eu sou a tinta branca que apaga a poluição.
Eu sou o mudo cantando no sarau.
Eu sou uma dívida a ser paga.
Eu sou uma pessoa ingrata.
Eu sou a ferramenta do mímico.
Eu sou o caráter de um cínico.

terça-feira, 9 de março de 2010

Curto


Os bracinhos tão curtos e abraçando o ar. Os vizinhos veem aquilo e não dão a mínima importância. Rafaela tem oito anos de idade e precisa mesmo brincar. Seu sonho era ter um gatinho de estimação, mas dá muito trabalho.

O abraço que Rafaela dá no ar, mesmo com os bracinhos curtos e toda fragilidade infantil, seria capaz de sufocar um adulto, de fazê-lo virar criança e cair em prantos. Ela abraçava mesmo, sem dó nem piedade, sem ligar pra mocidade. E quem disse que era só ar e partículas de poeira? Podia não acertar de primeira, mas olhando bem de perto e sendo um tanto esperto, dava pra notar as sobrancelhas, os lábios avermelhados e o cabelinho penteado de lado. Ah! Quer saber? Dane-se se ninguém notava! Rafaela abraçando era o que importava. Ela não pensava em seu próprio umbigo, e o amigo pra ser amigo, tinha de rimar com ela, por isso o menino se chamava Sentinela.

Sentinela carregava na cintura a arminha de brinquedo, podia parecer inofensiva, mas guardava um segredo que enchia todos de medo: um disparo e era fatal, preparava-se o final. Por isso, todos fingiam que Sentinela nem existia, era o medo de se complicar e depois explicações ter de dar.

Rafaela e Sentinela eram bons amigos, uma amizade quase colorida. Culpa dos gizes de cera, que ficavam dando pinta, sem eira nem beira, convidando os dois a rabiscar qualquer parede de primeira.

Rafaela era tão fiel, que quando chegava o seu Emanuel e via aquela danação, a parede mais do que estragada e os gizes quebrados no chão, não poupava aquela bronca. “Sentinela só ronca”, pensava Rafaela. Escutava tudo caladinha, sem dar um pio, mas se já soubesse falar isso diria puta que pariu!.

Os dois já passaram por poucas e boas. Teve o dia que resgataram o Quicky Bunny daquelas corredeiras de chocolate e o devolveram são e salvo à cachoeira de morango. Assistiram juntos “A Hora do Espanto”. Dormiram às quatro da manhã e aprenderam que não precisam escovar os dentes, é só comer maçã. Rafaela desastrada verteu leite pelo nariz, Sentinela que não pensa em nada queria tapar a narina com giz. Certa manhã, Sentinela amanheceu com febre, Rafaela pensou em fazer greve até que ele melhorasse. Ela pegou o termômetro escondido e pôs embaixo do seu braço, mas afundou, caiu no chão e não sobrou um pedaço.

Deitados num gramado do quintal eles observavam as nuvens que pelo céu passavam. E eram tantos formatos, que o mundo todo parecia estar lá. O mundo de baixo, do gramado, e o mundo de cima, do céu. O verde e o azul. O mundo das ideias soprando. Até Sentinela Rafaela viu, numa nuvem que tinha mais ou menos o tamanho de outras mil.

Tudo eles topavam, e não havia perigo pequeno ou grande, mas quase todos os dias tropeçavam numa pedra do tamanho de um elefante. Era quando Rafaela tremia e segurava a mão flutuante de Sentinela, sem saber que ele tremia mais do que ela. Aparecia então, olhando pela janela, aquele velho de barba por fazer, de manchas no braço, que se ela soubesse dizer, diria que lhe dava asco. O velho cuspia um catarro verde, que às vezes grudava na parede, encobria seu giz de cera. O velho só saía para a feira, voltava com alguns poucos legumes e um dia trouxe uma peneira. Sentinela e Rafaela ficavam só de olho, de guarda, espiando feito onça, temendo que dentro da sacola houvesse uma criança.

Mal sabiam eles que o velho tinha um nome, que tinha netos também, e que um dia, quando criança, andou de trem – era o sonho de Rafaela e Sentinela. Pois é. Eles não imaginavam aquela figura com sapatinhos pequenos, com olhar mais sereno, sem barba de rabugento. O velho, quando criança, empinava pipa, sobia na pia, assobiava todo dia, jogava bolinha de gude, tomava banho em açude, rodava pião e levava pontos na mão.

O velho não era mais criança, e por mais experiente que fosse, nunca poderia prever as intempéries do coração. Na rua deserta, só Rafaela e Sentinela. Os dois com um olhar assombrado. O velho em seu pior estado, revirando os olhos e desfalecendo. O que ele está fazendo?, Rafaela perguntou. Curiosos, aproximaram-se, abriram a porta e fitaram aquele corpo estrebuchando no chão. Bateu na cabeça de Rafaela o número da emergência que passava na televisão. Três dígitos.

Foi ao telefone público, mas o bracinho não alcançava direito. Sentinela estufou o peito e a carregou nos ombros. Agora ela era maior do que qualquer um. Falou com uma moça do outro lado da linha e explicou que o velho caiu e pum!

Uma vida então foi salva, naquela manhã tão alva. Alguém deixou de morrer, graças a outro alguém que nem existia. Mas o mais importante de tudo, era que Rafaela não sabia.

Dedicado a Rafaela, que graças à sua existência me trouxe inspiração para este conto e, mesmo longe, sempre me incentiva. Obrigado.

domingo, 7 de março de 2010

Paralela


Depois de um dia amargo,
caminhava pelas ruas de mercúrio.
Carregava o mesmo fardo
no silêncio sem murmúrio.

Aí vem você. Do nada vem.
Pequena, perfeita para meus braços.
Vem como se fosse um trem.
Sei que faço um laço.

Um abraço meio contido,
um olhar só periférico.
Meu coração fica aguerrido.
Crio em ti novo mistério.

Dois minutos de palavras esparsas,
talvez sem importância para você.
Minha mente toma asas, ainda bem
que ninguém as vê.

O que é amor à primeira vista?
É aquilo que se paga a prazo ou
é aquela placa de “invista”?
Podemos ter um caso?

Deveria ter te espiado mais.
Agora não sei bem te descrever.
São coisas que a timidez nos faz,
mas ainda me lembro de você.

O nome me deixou em dúvida.
Não o ouvi muito bem.
Pensei pelo resto das horas, mas
que importância isto tem?

Acho que os olhos eram pintados
castanhos daqueles cor de mel.
Teus braços em volta do meu corpo e,
ah! eu estaria de novo no céu.

Paramos. Fomos nos despedir.
Quem sabe o tempo não congela?
Você disse: “Minha casa é aqui”.
Agora eu passo e olho pela janela.

Nunca ninguém visível,
só a luz do quarto acesa.
Penso como seria incrível,
se eu gritasse: apareça!

Mas eu nunca te visitarei.
Rodeio-me com a solidão
e dela me sinto rei
trafegando por lei na contramão.

Queria cantar pra ti assim
um pouco bêbado, atrapalhado.
Queria cantar que nem Jobim:
“Vem cá, Luiza”, vem do meu lado

mas teu nome é diferente.
Não importa como a gente chama,
importa é como a gente sente.

Nem Sempre


Às vezes, a gente se sente tão
só, que nem parece que sente.
Às vezes, a gente parece tão dor,
que nem parece que sente.
Às vezes, a gente nem coloca meia.
Às vezes, o cabelo a gente nem penteia.
Às vezes, a gente anda tão nu que a
solidão incendeia.
Às vezes, a gente fica com a fuga atrás
da orelha.
Às vezes, nos tosam que nem ovelha.
Às vezes, a narração do minuto é
mais comprida que o resumo do dia.
Às vezes, é muita covardia.
Às vezes, é perda de tempo.
Às vezes não se sabe quantos
às vezes cabem de uma só vez.

A Partir de Agora


Este conto resume bem minhas impressões sobre meu trajeto quase diário à universidade. Coisa que requer de mim um certo esforço emocional.


Chegou a hora. Vejo no relógio. 18:15h. Chegou o momento de sair por aquela porta. Meus cabelos moldados pelo travesseiro, meu eu sem camisa. Alguém que não quer partir, que prefere ficar à deriva de dias lerdos. Vejo em cumprir a obrigação apenas um requinte masoquista. Sem mais resistência, visito o cadafalso todos os dias. Aliso meu pescoço como se nele vivesse uma gravata fantasma que aperta, nunca cede. Entrego-me logo às aulas de Direito, aos dias. Entrego-me logo ao chuveiro. Antes, checo a roupa. Escolho uma qualquer. Ponho sobre a cama.

Desce a água, molha a cabeça, e eu poderia ficar mais. Poderia viver mais sob o chuveiro e achar que é tudo água, que tudo escorre pelo ralo e vai para um esgoto comum. Mas me sinto pressionado. Tenho de ir. Tenho de cumprir logo. Não importa o atraso, não importa a pontualidade. Apenas corro como alguém que anda sem parar. Corro como alguém que vive parado. Correr para sempre é nunca mais se mexer. Fecho o chuveiro, me enxugo, escovo os dentes, passo os dedos entre os cabelos.


Cueca, calça, camisa, meia, tênis. Estou pronto. Até que ponto vestido? Não sei. Abro a porta, despeço-me de minha mãe. Caminho ainda tentando corrigir a postura. Piso os pés na calçada. Sigo o rumo que sobra. Vejo as velhinhas sentadas, conversando sobre o quê? Não sei. Sobre a igreja? Prefiro imaginar que conversem sobre perversidades. Perversidades mais perversas por serem velhinhas. Enfrento o declive. O lava jato, a delegacia, a biblioteca pública. Passo pela luz do poste, sempre olhando em sua direção, ofuscado, quase no mesmo ângulo de visão que tenho da lua. Imagino um eclipse, do meu mundo, pequeno, do poste, com o desconhecido, a atmosfera lunar.

Na rua, os carros passam, as motos cortam o ar, superlotadas, as bicicletas tentam chegar a algum lugar. Espero, me irrito com esse improvável trânsito. Mais velhinhas na calçada, aproveitando a velhice. Como é bom ficar velho. Atravesso a rua, subo alguns degraus da igreja da matriz. Tenho a impressão de que as velhinhas me olham pelas costas, de que se perguntam por que eu não me benzo como todos. Talvez não se perguntem sobre isso, mas eu imagino alguém reparando em mim.

A praça e suas luzes, suas pessoas, suas fontes de água. Quase como um Lego empoeirado, montado há anos, sem mover uma peça. Um senhor de cabelos brancos e meio calvo fala comigo, acena com o braço. Eu paro. Quero ser gentil, dar ouvido a todos. Ele me pergunta se não quero livros, bons livros. Fala sobre os livros, diz que são difíceis, diz que pagou muito por eles com todas as tarifas dos correios. Sinto muito, senhor. Eu não quero seus livros, mesmo que tivesse dinheiro. Acho que ele quer uma companhia, alguém para falar sobre livros. Alguém para falar sobre João Cabral de Melo Neto em meio àquelas merdas de pássaros que cobrem o banco. Senhor, venda seus livros para as velhas, elas precisam mais do que eu, pensei enquanto olhava um pardal morto perto dos meus pés.

Atravesso outra rua, na calçada, pessoas bebendo. A TV do bar ligada exibindo futebol. A fumaça e o cheiro de carne queimada abraçam por um momento meu corpo. Próximo a uma farmácia, velhos jogando dominó, sentados, batendo as peças com força, eufóricos. Lembro do dia que eles começaram. Eram um ou dois, desanimados. Agora eu os vejo apostando dinheiro, cobrando os que devem, exaltando suas potencialidades no jogo. Como é bom ficar velho. Nós nem precisamos viver, apenas sobreviver.

Becos, ruelas, aperto. Divido as calçadas com cadeiras, bicicletas, caixas abandonadas. Desvio. Exercício constante. Queria poder seguir reto às vezes. Apenas fechar os olhos e seguir, mas sempre tem algo deixado no caminho pra gente tropeçar. Por isso mantenho os olhos abertos, o suficiente para enxergar meu reflexo num espelho ao fundo de um velho salão de cabeleireiro. Tesouras sujas, enferrujadas, atracadas nos dedos. Tesouras que decepam orelhas como borboletas carnívoras assanhadas. As luzes fracas de mercúrio, penumbras assombrosas. Minha sombra projetada no chão, menos apática que eu. Aí vem aquele cheiro, suave mas incômodo. O cheiro da madeira dos caixões que esperam seus cadáveres em pé. A madeira velha, no ponto, quase como um instrumento musical. Madeira influencia diretamente na afinação. E, no meio de todos aqueles caixões dispostos um ao lado do outro, um velho assistindo TV, sem camisa, sentado numa cadeira de balanço, vendo a novela sem preocupar-se com a morte. Como é bom ficar velho.

Passo por alguns mototáxis na esquina. Parecem solitários, sempre esperando alguém que requisite seus serviços. Eles olham ao longe e contam piadas escorados na parede. O asfalto vai ficando mais sujo, mais marcado. Sinto cheiro de peixe podre, cheiro de mercado municipal. Desvio de um pedaço de carne jogado no chão. Tomates, batatas, cebolas, todos esmagados, colados no piche, como se brotassem dele também. Tenho este como meu lugar preferido da cidade. Pelo menos é o mais honesto, sem maquiagem alguma. Caminho ouvindo os gritos da sujeira emanada pelos poros do lugar. É a verdadeira pele que vem à tona empapada de saliva, de urina. Quem sabe sangue? Quem sabe esperma? Sinto meus pés sujos, minhas solas marcadas, meus pensamentos perdidos sob um véu negro intransponível. Um véu que cobre toda a cidade por mais iluminado e perfumado que seja o ponto.

De esquinas vivem os bêbados. Sempre um bar aberto esperando o desejo por aguardente. E os clientes estão lá, sedentos por algo que lhes faça esquecer o dia. Alguns fazem bem, ficam no caminho, entulhados no chão, quase como as caixas esquecidas. Perto deles, uma poça, e na poça, um gatinho. Deve ter esquecido de comer e bebeu muita água. Lá, apodrecido, respeitoso. Só fede quando bate a brisa. E ele me deixa passar. Bares, sinais de trânsito, mercadinhos, um móvel antigo bloqueando a calçada, buracos, tampas de garrafas, cigarros, tijolos... Eu é que me embebedo dos personagens cotidianos que vivem intensamente meu caminho perdido. Nunca poderei lembrar de apenas um, somente de todos. Porque eles compõem e personificam a sinceridade do fracasso. Programado para parar em um ponto, eu simplesmente deixo de andar e me sento naquela cadeira da faculdade, inodora, mas quase tão fúnebre quanto a madeira dos caixões.

Companhia de Ninguém


Escrevi este conto durante o período que passei quase um ano morando num apartamento em Juazeiro do Norte, longe de qualquer pessoa, sem sair de casa e sem internet. Acho que sou indiferente a ele. Talvez isso seja bom, pois já não parece tanto que eu o escrevi.


Companhia de Ninguém


Duas e meia da manhã. Lua cheia, bonita. Céu sem estrelas. Dois dias seguidos sem dormir. Hernandez olha pela janela e observa o cenário perfeito para uma saída com os amigos. Quem sabe, mesmo um encontro a dois. Seria ideal se o silêncio vindo de fora não lhe trouxesse uma amargura crua. Nem mesmo um maltrapilho vasculhando latas de lixo na rua para se observar. Para ceder um pouco de longínqua companhia. Não mesmo. Seria perfeito se o silêncio de fora não trombasse com o som estridente de dentro, da Televisão.

Hernandez sabia que um dia isso ia acontecer. Que os amigos, que os amores, que os parentes, todos eles, todos eles iam de se esvair. Só não sabia que seria tão rápido. Só não sabia que seria antes dele ser atropelado e passar o resto da vida sendo alimentado por tubos.

Os estranhos lhe significavam os restos da alma humana que pairava sobre seus devaneios. Estranhos que, pensando bem, poderiam ser tão afáveis, tão cheios de respostas e correspondentes ao modo de vida de Hernandez. Este, já era mais um de seus devaneios. Estranhos suspensos sobre seus devaneios. Eles permaneciam inabaláveis, com sua vida a seguir, sorridentes e atarefados. Bons amigos passeando com o cachorro, boas esposas indo embora pela vitrine. Todos expressavam virtudes, maquiavam o que de mau lhes restava e pareciam normais. Abundantemente normais. Relaxados com a vida e com os dias que estavam por vir. Hernandez não. Não conseguia: barba por fazer, ombros caídos. Descuidado. Ele tropeçava dezenas de vezes ao dia. Em um desses, esbarrou sem querer num poste, quase quebrando o ombro. Ficou fascinado por seios medianos - mas tão empinadinhos - de uma moça que vinha em sentido contrário ao seu. Ele não devia ter feito aquilo. Agora, obviamente ela pensa “Homens, sempre deixando levar-se pelo instinto.” Mas ele não! Ele era sensível. Sentia muito pela situação. Sentia muito pela mocinha ir embora levando seus seios simétricos e uma imagem errada de sua pessoa.

Como todos os pensamentos que vêm e vão, mais um se fora: o da mocinha de seios arrebitados se fora, dando lugar a “por que tudo anda tão vazio?” Hernandez se via impotente a tentar responder. Olhava pela persiana buscando explicações. A essa hora da manhã só acharia um ambiente desértico. Nem mais os acidentes do cruzamento, que lhe acordavam feito despertador, ocorriam. Lembrava que, há uns meses, estes eram muitos. Crash pra lá e crash pra cá. Retrovisores de um lado, carne de outro. Não demorava e as pessoas se aglomeravam, causavam burburinho. Olhavam a vítima agonizar. Um ou outro samaritano ligava para a emergência. O resto vinha mais pela curiosidade. Chegavam de mansinho, compartilhando olhares sádicos. Hernandez ficava apoiado no parapeito da janela, observando toda aquela movimentação. Todos aqueles cochichos e inquietações. Chegava a emergência e acabava a festa. A multidão dispersa retornava de onde veio cheia de más e fresquinhas notícias para contar.

A prefeitura pôs postes, melhorou a sinalização, revogou a lei de Murphy. As pessoas ficaram recatadas. Hernandez não saltava mais da cama ainda enrolado nos lençóis para olhar pela janela. Ficou mais Zen só fitando quatro paredes. Quatro ou quantas fossem, não importa. Sempre pareciam um quadrado, uma caixa. E das formas geométricas, ele preferia a esfera. Tinha alguma ligação com o futuro. Prever o futuro. Atrativo, quando este parece eternamente o presente.

O destino aprontou com ele. Não previu a falta de ração no aquário esférico de Henry, seu peixinho dourado. Hernandez esqueceu do presente tão latejante e acabou deixando morrer a única forma de vida que não se resumia a pixels em seu lar. Pobrezinho de Henry que, molhado, acabou morrendo seco de fome. Era algo para se pensar. Se pensar nessa ação tão impensada. “Isso, se culpe, Hernandez, se culpe...”, pensava, num momento de autopenitência. Momento de luto. Esvair mais um peixinho pela privada ou experimentar o gosto do amigo grelhado na manteiga? Sem mais cerimônias, ele deixou Henry lá, deitado sobre o barquinho pirata que servia de adorno. Depois pensaria em algo mais elaborado. Uma caixinha de fósforos cheia de flores para se sepultar no jardim – caso houvesse jardim –, ou, quem sabe, um vôo literal até as nuvens, amarrado numa pipa. Planos de uma última homenagem merecida ao amiguinho de sempre que nunca abriu a boca para reclamar. Que nunca usou as guelras para outra coisa a não ser para puxar oxigênio. Uma pena.

A Televisão trazia as pessoas para dentro de seu apartamento. Um pouco de gente, direito dos satélites, das ondas fantasmas. Exatamente três da manhã e os canais na ativa. Explosões de hormônios, de sexualidade. Explosões de religiosidade, de fanatismo. Explosões de carros, explosões de casas. Explosões de jóias, de quilates. A grande explosão na guerra de audiência daqueles insistentemente acordados. Todos explodindo, um atrás do outro. Um atrás do outro, como num trem a ponto de descarrilar. Era frenético, psicodélico. Hernandez recorreu à TV, esperando o sono chegar, esperando o sol raiar, o dia nascer, a hora do rush ferver, e encontrar alguém para ajudá-lo a consumir uma noite.

Seus olhos ziguezagueavam involuntariamente. Pareciam querer saltar dali. Correr de sua face e se divertir à luz dos outdoors. Recostado numa poltrona aconchegante, ele virou a cara. Desviou os olhos enérgicos da TV. Mantiveram-se abertos, como se nas pálpebras houvesse pregos pontudos. Ficou só com o som e as cores – quase cromoterápicas – impressas no ambiente escuro.

“Você que está perdido, que está largado, que não consegue mais ser feliz, não consegue mais ter um amor, não consegue estabilidade financeira. Venha até nós e desamarraremos o seu nó. Cristo desamarrará o seu nó – retificou o pregador. O endereço é...”

Hernandez estava melancólico, mesmo assim, conseguiu sorrir com a proposta do pregador que se esgoelava pedindo para que os telespectadores levassem suas roupas suadas com nós à igreja mais próxima. Muitas. Muitas igrejas. Pareciam redes de hipermercados espalhadas por todos os lugares.

Pegou o controle. Mudou de canal. Shopping na TV, mais shopping, Frankenstein, duas loiras peladas se encharcando. Estava fatigado daquilo e não podia dizer a ninguém. Pior, não havia ninguém. Hernandez estava silenciado por essa liberdade, ou esse vácuo que o rodeava.

Silêncio. Um silêncio ensurdecedor. A Televisão sem som. Apertou sem querer com o cotovelo o mute no controle remoto. Nem se deu conta. Apenas relaxou. Esticou os pés ainda de meias. Fez um carinho na nuca.

Pela janela, o asfalto preto. Velho. Linhas brancas que nunca se apagam. Madrugada e pessoas correndo com peças de banho pelas ruas. Tudo bem que nunca fazia frio, mas era extravagância demais, até mesmo para uma festa temática. Sua festa? Pelo menos no bote salva-vidas que um homem de peito depilado, só de calção de banho, carregava. Estava escrito “Hernandez”. Que bela homenagem! Uma bela homenagem de amigos que Hernandez nunca ouvira falar. Isso que é dedicação. Impressionou-se mesmo foi com a sósia da Pamela Anderson. Era um clone fiel.

Estava feliz. Hernandez não podia mesmo conter o sorriso no rosto. Ele não gostava disso de mudar da água pro vinho. Preferia manter certo desdém no início e depois ir se derretendo aos poucos, se entregando aos poucos. As pessoas gostavam e também lhe davam mais valor. É o charme de chegar atrasado. De deixar todo mundo te esperando.

Só precisava interfonar para o porteiro e permitir a entrada de todos os seus mais novos amigos. De corpos esculturais, descolados e com óculos de sol, eles cheiravam à praia. Cheiravam à maresia. Todos lá embaixo, radiantes. Loucos para subir e comemorar a bênção de um bom companheiro.

“Alô, Edmar”, disse Hernandez, ao interfone. Supunha que fosse Edmar do outro lado da linha.

“Alô...”, não era. Voz feminina. Falha, fina.

Edmar poderia estar em um momento íntimo. De certo, recebeu adiantado e contratou logo os serviços de uma prostituta. Estava com a razão. Não ia era ficar sozinho. Assim como Hernandez, que não adiaria sua festa por nada. “Então, Edmar, fique com sua festa que eu terei a minha” ele pensou.

“Desculpe incomodar, mas, por favor, o Edmar está?”

“Sim... está” hesitou ao telefone.

“Passe para ele, sim?”

“Ele não pode atender. Matou-se agora há pouco. Enfiou uma chave no ouvido e foi lá dentro. Disse que queria abrir a mente.”

Hernadez emudeceu. Impossível saber o que dizer. Apenas largou o interfone e caiu de costas no sofá. Tudo bem Edmar ter se matado. Tudo bem mesmo. Aquele maldito porteiro inútil. Agora doía era a cabeça de Hernandez. Do silêncio a um zumbido ininterrupto, grave e poderoso, tremendo todo o crânio.

Olhou através da janela para seus novos amigos. Buscando mais uma ajuda, quem sabe. Mas a língua enrolou. Só escorria baba da boca. Continuou olhando, mostrando seu estado. Uma imagem vale mais do que mil palavras. Ninguém a se manifestar. Estáticos os manequins permaneciam. Cheiravam praia, cheiravam maresia. Cheiravam sangue com seus maiôs vermelhos. Alto-mar e tubarão. Silêncio com o caos instalado. Asfalto morto e sangue semivivo. Hernandez arquejou. Espirrou. 160 km/h de um trem passando por seu nariz. Única e exclusivamente pelo seu nariz. Mandou para fora, seu cérebro, ainda preso por um só fiozinho de carne. Aquele fiozinho de carne. A linha entre a existência como ser e o pó. Teria morte cerebral comprovada por um maldito médico, seu vizinho, que cortava perus de transexuais nas operações de mudança de sexo e os fritava no jantar.

Hernandez tentou pôr a cabeça no lugar, ou melhor, pôr o cérebro no lugar e buscar a melhor saída.

Tudo tão absurdo e horrendo. Não se sabia nada sobre a melhor saída. Só se escutou um estalo vindo da tomada da Televisão. Umas faíscas saltaram fora. A imagem tremulou e retornou ao que era. Hernandez deu por si, assustado, sem o cérebro por um fio, sem Pamela Anderson e seus galões de silicone, sem seus amigos praieiros, sem Edmar de mente aberta. Mas ainda os sentia, como membros fantasmas. Parecia algo verídico que por ali passara.

Hernandez, desnorteado, sem saber o que, quem, para que, onde, quando. Sem saber de nada, do nada, estava bem em frente ao computador, ligado. A luz perturbando seus olhos. Vira uma vez na TV que é recomendável, na hora do sono, ficar longe de qualquer aparelho eletrônico que possa lhe estimular, lhe excitar, fazer-lhe ficar ligado, cheio de informação. Vira também o estudo das ondas eletromagnéticas. Ondas de rádio, de Televisão, ondas da rede mundial de computadores, serviços de telefonia móvel... Invisíveis, trombando, aglutinando, repondo informações e, quem sabe, doenças. Nada comprovado, mas Hernandez tinha alguns palpites.

Quase o terceiro dia sem dormir. Sem um cochilo sequer. Olhos secos. Teve alucinações de olhos abertos. Seria mais reconfortante se houvesse sido um pesadelo. Um pesadelo toda noite. Ele trocaria. Trocaria pelo direito de dormir. Se bem que, a essa altura, os pesadelos já se faziam presentes, e reais.

Era uma noite enorme. Daquelas que se pode quase ter a certeza de que o sol morreu. Hernandez tinha essa certeza. Parecia um fantoche, só esperando a próxima ordem dada por ele mesmo. Dada pela nuvem de estranhos que, a essa hora, dormia tranquilamente. Dada pelas ondas eletromagnéticas que vagavam solitárias.

A próxima ordem era estranha. Na tela do computador, ele viu um formulário digitado e preenchido. Tudo sobre sua vida. Das maiores futilidades possíveis ao seu eu mais profundo e íntimo. Uma foto na capa, Hernandez, sorridente, bonito. Bela iluminação. Mas como seria capaz de digitar tudo aquilo em transe? Psicografia?

Gostava da macarronada, odiava gatos e desenhos japoneses. Mulheres? Ah, sem tantas exigências. Apenas uma que conseguisse dormir nas horas certas. E trabalhar nas horas certas.

Imprimiu o que pôde, até a tinta acabar. Pôs as impressões em volta do braço e saiu por aí. Ninguém na rua. Só a madrugada densa de companhia. Hernandez festejando, com seus papéis, esvoaçantes. Sujando as ruas que pareciam ceder todo seu espaço para apenas um ser humano. Viu-se um vira-lata ao longe rasgando uma das folhas, partindo sua face impressa em pedacinhos.

Hernandez chegou em um poste e quis colar um. Não tinha cola, mas experimentou como ficaria sua foto sob a luz fraca, destacada sobre o poste, sobre os anúncios políticos e pichações. “Bem”, ele pensou. Lembrou dos avisos de “procura-se”, nos filmes de velho oeste.

Depois de tudo, sentou-se. Sabia que acharia amigos que o leriam por aí. Melhor, eles o encontrariam. Embaixo de bancos, pendurado em árvores, grudado em janelas, rodando em pneus. Ele estava em todos esses lugares. Só precisava de uma conexão. De alguém que cedesse dois minutos de seu dia para ler uma folha amassada e pisada no chão. Eles o encontrariam, de uma maneira ou de outra, o encontrariam. Quantos garis, trabalhando no lixo, não gostariam de levar sua história para casa, de lê-la no trabalho. Hernandez gostou da idéia. Salivou pensando o quão doce seria. Caiu em posição fetal e dormiu. Quem sabe alguém não o encontraria?

No Balanço das Horas


Tirei este conto do fundo da gaveta. Fazendo uma comparação com o que escrevo hoje, apesar de se encontrar vários pontos semelhantes, ele deixa transparecer um ar ingênuo, mas não propositalmente. Acho que eu devo tê-lo escrito entre 2005 e 2006. Como recordar é viver, como viver é passar o tempo, como o conto fala sobre tempo , um texto de outro ano, de outra época, de outra percepção, é bem propício.

No Balanço das horas

Os dias ensolarados sempre são considerados dias felizes. Hoje, mesmo com os raios luminosos do sol, meu dia foi cinza. Não me entristeci, nem me revoltei com nada, apenas observei o dia passar de forma contemplativa.

As pessoas pensam, reclamam consigo mesmas por nunca pararem para observar o dia, agradecer à natureza, prestar atenção na moça de olhos bonitos, ou até mesmo brincar com o filho em um parquinho qualquer. Eu não quis fazer nada disso, mas observei tudo de uma maneira estranha: vi números nas pessoas. Depois de passar por uma loja de relógios, senti-me adormecido com tantos tic-tacs, com tantos pêndulos, com tantos cucos. Estava hipnotizado. Sentei-me ainda tonto num banco antigo perto da loja. Chacoalhei a cabeça e surpreendi-me com tamanha diversidade encontrada à minha frente.

Meus olhos seguiam os passos dos transeuntes como se segue uma bolinha de tênis de um lado para o outro em uma partida emocionante. Sapatos tão diferentes, pêlos das pernas de diversos tamanhos, calças ridículas, mulheres gestantes, velhinhos com bengalas estilizadas, e muitos números com a cor dos ofuscantes raios de sol. Percebi que, assim como as pessoas, todos os números eram diferentes, nem que fossem por milésimos. Ainda assim eram diferentes. Números que se esbarravam, pessoas disputando o mesmo espaço. Depois do choque, temos tempos que se cruzam atrasando-se simultaneamente como num jogo, em um desafio onde todos estão em busca de algo.

Pensei nos milhares marcadores de tempo, desde os milenares, funcionando através dos raios de sol - coincidentemente como esses que agora observava -, até os digitais, precisos, atômicos, que nunca chegam a atrasar um segundo em séculos. Senti que os relógios mais importantes eram os que eu via. Tantos números e todos com tantas histórias para contar. Olho para o engravatado, parece ser bem sucedido, seu relógio tem as horas curtas, ele precisa enriquecer mais e deixar um patrimônio para os filhos. Olho para o senhor com roupa modesta, com cara sofrida e calos nas mãos, seu relógio tem as horas curtas, ele precisa trabalhar para sustentar seus filhos e terminar de pagar todas as prestações do seu plano funerário. Olho para a prostituta, seu relógio tem as horas curtas, ela precisa transar mais e mais até que acabe a noite e, para ela, literalmente tempo é dinheiro. Olho para o rapaz perturbado, com as mãos ainda sujas de sangue fresco, talvez um assassino, seu relógio tem as horas curtas, tantas vítimas para estripar, e, precocemente preso, com tantas horas atrás das grades.

Observei tudo e todos, vi seus problemas, seus anseios e soluções através de números, números esses que, assim como o sol ousam em se apagar uma hora. Tanta pressa, tanta correria, tanta ousadia. Tudo isso pela mesma causa: o tempo que não pode ser parado, que não pode se esperado, que vive com as pessoas, que não define se elas são más ou boas. Tudo vai escurecendo, a lua toma o lugar do sol e, quem passa, abandona por um momento o seu marketing pessoal. O advogado talvez já esteja em casa, depois de transar com uma prostituta, encontra-se muito cansado para a esposa e sem tempo para os filhos. A prostituta se encontra com o órgão sexual adormecido. É hora de contar o dinheiro para ajudar no sustento do seu pai, um senhor modesto que, a essa hora, já deve estar jogado no chão depois de receber um golpe de machado na cabeça executado por um assassino que agora está atrás das grades, esperando um defensor público, que já não tem mais tempo para a esposa e os filhos. Tudo agora tão parado... Enxergo o que talvez seja minha última visão agradável desse meu dia: um relojoeiro sem tempo para com o relógio fazer tantos tempos.

Visita


Tarde da noite. Nem sei que horas da noite, mas tarde. A janela entreaberta e a luz forte da lua a penetrar. Minha mãe na cadeira de balanço, balançando, mas dormindo. Sonâmbula. Alguns pedaços de tricô, agulhas e panos esfarrapados sobre seu colo. Eu passava por ali. Ia direto para meu quarto, mas tinha alguém na sala. Parei para ver quem era. Minhas pernas já trêmulas. Adrenalina bombardeada. Mas, calmo. Fingi estar calmo. Devagar, acendi a luz.

Era simpático o rapaz sentado na poltrona. De pernas cruzadas, calça jeans justa e um terno preto. Ele, desde o escuro, tinha os olhos em mim. Já me esperava ali. Sabia que eu ia acordar e tomar um pouco de água na cozinha.

“Estive te esperando por um bom tempo”, disse-me, animado, deslizando os dedos pelo estofado da poltrona.

“Acho que está havendo um equívoco aqui”, eu respondi, ainda fingindo estar calmo.

“Equívoco nenhum.”

Fiquei por um momento tentando rastrear aquele rosto na minha memória. Aquele rosto jovem, mas com um pouco de rugas. Com um toque de velhice. Queria não ser descortês, mas não lembrava. Tinha de perguntar. Para minha segurança, eu tinha de perguntar.

“Realmente sinto muito, mas não sei quem é você.”

“Sei que não me conhece, meu caro amigo. Só eu lembro de você.”

Certo, eu tinha de manter a calma. A pouca calma que fingia ter. Poderia ser um sequestrador, daqueles dos sequestros relâmpagos. Mas eu não tinha dinheiro. Melhor, minha mãe não tinha dinheiro para pagar o resgate. Ele iria cortar cada pedacinho meu e enviar pelo correio de aperitivo. Uma orelhinha, depois um dedo, depois um nariz. Cada coisa por vez. Cada coisa por semana. Certo, eu não preciso me desesperar. Não devo fazer movimentos bruscos. Mas e se ele for um serial killer? Se ele for alguém que nem o dinheiro para. Que só quer mais um corpo na sua mesa de cirurgias? E se ele for apaixonado por mim? Um daqueles admiradores secretos obsessivos? Tenho de me concentrar no telefone. Tenho de me concentrar no telefone. No telefone vermelho, reluzente. Tenho de segurá-lo firme e acertar sua cabeça. Na nuca, para desacordá-lo. Se eu matá-lo, será legítima defesa. Não consigo. Minhas pernas estão tensas demais para se mexer. Perdoe-me, mãe. Eu falhei desta vez. Escorraçar um bandido de casa e não consigo. Desculpe-me. Vou fazer o que ele quiser para tentar permanecer vivo. Espero que Deus tenha piedade de mim. Sei que Deus não tem nada a ver com isso. É, eu sei. Que pelo menos não doa, Deus.

“Você parece nervoso”, ele disse. “Desculpe-me pela maneira que te abordei. Isso de ficar esperando no escuro não foi uma boa ideia, mas sua mãe permitiu que eu entrasse. Vi que ela parecia dormir e apaguei a luz para não incomodá-la.”

Então era isso. A velha agora colocava estranhos dentro de casa. Não bastava os chiliques que ela dava achando que alguém mexeu nos seus tecidos, tesouras, agulhas. Ela, sempre ela. Ela mesma. Só que esquecia do que fazia. Esquecia com frequência. Não esquecia de esquecer. Nunca me incriminava diretamente. Mas passava horas gritando: “Alguém mexeu nas minhas coisas! Quero saber quem foi o maldito bandido!” e ficava olhando para mim. Quando isso acontece, sempre tenho de procurar as velharias da velha. E sempre as encontro nos lugares mais inusitados: pia, geladeira, jardim. Espero não encontrar agulhas na comida.

Ele aproximou-se de mim amigavelmente. Não reagi. Eu era só um corpo que obedecia ao que ele queria. Com aquela mão no meu ombro indicando a direção.

“Tem mais alguém aqui te procurando.”

Mais alguém? Era o carrasco? O executor? Adeus, dias cruéis! Fomos até meu quarto. Meu quarto escuro, frio, desgastado. Meu receptáculo de todas as noites. Arqueei as sobrancelhas, porque suas características mudaram.

“Veja, seu nome é Elisa”, disse o rapaz misterioso, apontando para uma garota que parecia ter aparecido ali depois de um nariz retorcer. Depois de um pó de pirlimpimpim.

Ela, sentada, sorridente, acenou para mim. Disfarçou o riso. Rodopiou na cadeira. Sorriu de novo. Maluca. Com plumas em torno do pescoço. Ela estava feliz. Muito feliz. Rodopiando. Se exibindo para mim.

Meu quarto, redecorado, vivo, cheio de cores, piscas-piscas, globo de luz iluminando um música indecifrável. Meu quarto zumbi, derramando uma urbanidade doentia, do concreto que retém as pessoas em casa. Nós três, lá, aconchegados, no meu quarto. Eu não sabia o porquê. Não precisava de perguntas. Assim que vi Elisa, assim que seu perfume se misturou às minhas coisas, àquelas luzes, eu soube que ela poderia ficar lá. Nós três. Obrigado, rapaz, por ter me apresentado Elisa. Nós três.

“Entre, Ana”, ele falou e interrompeu meu pensamento.

“Entre, Ana”, reforcei.

Ana esfregou suas botas de cano curto no carpete e entrou, tímida. Ria menos por conta da sua timidez. Era linda. Não tanto quanto Elisa, mas ainda sim sublime. Ela se aproximou. Aproximou-se do meu amigo misterioso. Encostou-se em seu ombro. Conhecia meu amigo misterioso e não dava bola para mim. Ainda bem que não, para não causar confusão. Ela dava bola para o rapaz misterioso. Elisa era quem dava bola para mim.

Ai, ai, Elisa. Você aqui e eu não sei nem o que te dizer. Também não quero dizer nada. Não quero estragar as coisas. Já me afundei tanto em palavras que não há mais sentido em repetir isso. Já me afundei tanto querendo explicar detalhe por detalhe, centímetro por centímetro, átomo por átomo dos meus sentimentos para que as pessoas acreditassem. Não precisava mais disso. Era só me deixar guiar pelos teus olhos fugidios. Teus olhos que não param quietos um minuto.

“Vou pegar cerveja para nós”, eu disse. Elisa veio comigo.

Eu me senti bem. Senti-me independente. O rapaz com a sua. Elisa comigo. Era uma noite legal. Elisa pegou a sua, eu peguei a minha gelada. Levamos três: duas para o rapaz, uma para Ana.

A cerveja ótima, no ponto. A espuma boa. A cevada boa. Eu e Elisa calados, encostando o gargalo nos lábios, brincando com a saliva e o resquício de cerveja na boca. O rapaz e Ana conversando freneticamente. Nós quatro sentados na cama. A música rodando. Rodando tão indecifrável quanto o que o rapaz e Ana diziam. Elisa finalmente disse algo. Não entendi:

“Onde fica o banheiro?”

“Hã?”

“Onde fica o banheiro?”, disse mais perto do meu ouvido, com aquele hálito de menta e cerveja.

“Eu te mostro”.

Levantei-me e fui lá, mostrar o banheiro. Era a cerveja fazendo efeito. O rapaz e Ana não olharam para nós. Eles continuaram a conversar. Eram muito legais.

Elisa fechou a porta. Eu fiquei esperando ela ali. Sentia falta. Ficava com medo de que não saísse mais de lá. Demorou um pouquinho. Acho que travou no começo por estar numa casa estranha. Depois escutei o xixi batendo no vaso. Ela demorou mais um instante. Abriu a porta. Sorriu para mim. Olhei seus dentes alvos, seus lábios rosados. Lembrei-me do cheiro de menta e de cerveja que ela bafejou. Aquilo me deixava vivo. E que delícia seria se eu pudesse sentir de novo, mais perto. Se fosse um beijo com aquele bafinho. Eu pensava rápido nessas coisas. Pensava enquanto ela se recompunha do banheiro. Enquanto terminava de enxugar as mãos na calça jeans.

A segurei pelo braço e nós voltamos. O rapaz e Ana a mil. Conversando como antes. Os dois davam pequenos saltinhos na cama quando iniciavam uma frase. Fervilhavam os dois. O rapaz não poderia ser mais denominado de rapaz misterioso. Ele tinha deixado a identidade e alguns trocados em cima do meu criado-mudo. Estavam amassados. Tirou do bolso de trás da calça. Eu olhei. Olhei e ri. Seu nome era João. Não poderia mais chamá-lo na minha cabeça de rapaz misterioso. Ri da foto 3x4. O cabelo dele grande, encaracolado, diferente de agora. Um aparelho nos dentes, uma espinha enorme bem no meio da testa.

“Ei, Elisa, olhe”, eu disse, segurando a foto no alto.

Elisa se aproximou, pôs os olhos próximos e riu. Riu feliz e caiu em cima de mim. João – ai! que falta faz chamá-lo de rapaz misterioso -, puxou a identidade da minha mão com força, também sorrindo.

“Essas fotos são horríveis. Nem Scarlett Johanson ficaria bem numa assim”.

“Scarlett Johanson”, eu disse, “por que logo ela?”

“É a minha musa pessoal.”

Ana deu um tapinha no braço de João brincando de ciúmes. Ana era dona dele então. Namorada de João. João e Ana, legais. Eu e Elisa, ainda a sobrar. Eu tinha de ser mais incisivo, menos covarde. Elisa estava na minha, eu acho. A noite perfeita. Tudo colaborava. Elisa perto de mim. Ai, Elisa. Fingi pegar algo no criado-mudo. Passei o braço por cima dela. Encostei o nariz nos seus cabelos. Àquela altura, estávamos perto demais. Captei seu segundo cheiro. Aqueles cabelos macios no meu nariz. Aquele cheiro de shampoo infantil me fazia lembrar a infância. Fazia-me lembrar de quando escorreguei no banheiro e rachei a cabeça. E do sangue aflorando, cobrindo meus olhos, meu nariz, a boca. Eu nu, água, suor, sangue. As coisas vermelhas. Esta lembrança agora parecia uma pétala de rosa caindo, graças a Elisa. Graças a Elisa que usa o mesmo shampoo que eu usava naquela época. Naqueles bons tempos, que ganhar um brinquedo com a cabeça rachada e no hospital era felicidade.

Voltei. Retornei da imersão nos cabelos de Elisa. Ela riu. Gostou do quase abraço surpresa. Disse que queria brincar comigo. Brincar como? Não com meu coração, não é, Elisa?

“Vou te maquiar.”

Ah, não. Era humilhação demais. Por favor, Elisa, não queira que eu seja seu amigo gay. Não levo jeito para essas coisas, sinceramente.

“Confie em mim”, ela disse, tirando o estojo de maquiagem de uma bolsinha preta.

Não poderia negar esse capricho a Elisa. Queria continuar sentindo o cheiro dela. Sei que Ana e João ririam de mim. Mas seria divertido até.

Seus dedos se aproximaram do meu rosto, cobrindo-o com pó-de-arroz. Estava quietinho, esperando ela terminar. Estava olhando para suas mãos, fininhas, o esmalte descascado. O esmalte vermelho, da cor do meu sangue no banheiro. Suas mãos exalavam o terceiro cheiro. Adocicado. Cheiro de produto tóxico que dá vontade de comer. Cheiro de detergente de maçã. Elisa parecia feliz. Eu não me sentia tão bem em vê-la rindo da minha cara. A verdade é que nunca me levaria a sério.

“Estou quase terminando”, ela me acalmava.

João e Ana ainda não haviam prestado atenção em mim. Elisa remexeu na bolsinha. Procurou, procurou e achou o batom, vermelho, mais vermelho que as unhas descascadas, mais vermelho que o sangue na minha infância. Elisa, por que eu? Por que eu para drag queen? Não poderia ser o João? Ele tem uma namorada. As pessoas não desconfiariam. Ele podia provar, provar que era muito homem. Eu não. Eu pareço um garoto. Um garoto assustado que treme quando você mexe os braços na minha direção. Vamos! Termine logo com isto. Eu não podia dizer. Não podia exigir.

“Pronto, terminei”, ela disse orgulhosa do seu feito, da sua experiência.

Elisa me puxou pelo braço, me guiou ao espelho. João e Ana sorriram, mas não debocharam.

“Agora você é Robert Smith!”, Elisa falou quando vi minha imagem.

Gostei da surpresa, gostei da fantasia. Gostei de como ela arrepiou meu cabelo sem que eu percebesse. Também, aquelas mãos pareciam pequenas almofadas. Pequenas nuvens que se dissipavam depois de serem atravessadas por um avião e retornavam à sua forma anterior. Elisa poderia roubar algo de mim. Talvez já tivesse roubado. Pois, enquanto os centímetros e a estranheza nos separavam, eu sentia um vazio, indescritível como um vazio deve ser.

“Agora vamos tirar umas fotos.”

Fiquei tonto com os flashes. Meu quarto era uma boate de pessoas loucas. Meu quarto era o lugar que tocava a música que ninguém nunca escutou e que ninguém nunca saberia se tinha escutado. Era indecifrável. Elisa era inefável. João e Ana eram essenciais. Não consigo definir suas posições no tabuleiro, mas eles deviam permanecer lá, sempre. Depois de quatro fotos, coloquei a mão em frente à câmera.

“Tudo bem”, Elisa parou.

Tudo bem, eles disseram. Eu não ouvi o que, mas entendi. Trouxeram um jogo de tabuleiro. João e Ana, Elisa e eu. Bons times. A partida começou. Eu não sabia o objetivo do jogo, não conhecia as regras. Só via as mãos de Elisa deslizarem no tabuleiro. Só via suas mãos afortunadas jogando os dados e comemorando depois. Ganhando para nós. Fomos os vencedores. Que bom aquilo ter terminado logo. João e Ana satisfeitos, Eu e Elisa livres. Livres até eles arranjarem algo mais para fazer. Algo mais para esquentar aquela noite, aconchegante, solitária. Aquela noite que parecia ser habitada apenas por nós quatro.

Elisa se enfadou. Por um minuto ela se enfadou. Abriu a primeira gaveta do meu criado-mudo. Lá estavam fotos que eu não sabia onde tinha guardado da última vez. Fotos da minha infância, chorando por não ter ganhado um caramelo, pelo palhaço feio e suado. Chorando por chorar.

Elisa riu do meu choro, riu das empoeiradas fotos polaroid. Meu choro infantil serviu para alguma coisa enfim.

Também cansei. Estiquei-me na cama. João e Ana por sua vez, continuavam sentados na ponta. Continuavam dando saltinhos, radiantes. Elisa viu e reviu todas as fotos, as poucas fotos. Ia se entregando ao marasmo. Foi até a janela, observou a rua por pouco tempo. Ninguém. Ninguém para confirmar se estávamos vivos. Nem gatos saindo das lixeiras.

Elisa esbaldou-se na cama também. Nós dois deitados, como se fôssemos fazer anjos na neve. Venci então o medo da rejeição. Encostei minha cabeça no seu ombro de um jeito mais íntimo. Voltei ao segundo cheiro, o dos cabelos. Cada vez que eu retrocedia a essas experiências aromáticas, algumas reminiscências eram despejadas em rápidos flashes. Pude me ver num dia de sol. Um sol que atravessava os cílios, que chamuscava os olhos. Que fazia o movimento das pessoas mais onírico. Acho que um sol com gravidade zero.

Movimentos lentos, frame por frame. Surreais. De dar enjoo. Belos. Um paradoxo que teimava em existir. Um momento que eu não queria nunca que chegasse ao fim. Atordoado como um morcego de sonar falho.

Seu corpo aproximou-se delicadamente do meu. A luz alaranjada do abajur incidindo no seu rosto como o sol que chamuscara meus olhos. Não enxergava muita coisa. Apenas instantes. Pequenos instantes que restavam no meu cérebro alheio à ordem natural das coisas.

O coquetel desceu goela abaixo cantando indecifravelmente, iluminando a garganta, laranja como o pôr-do-sol, com jeito de cerveja e menta. Seus lábios encostaram-se nos meus. Também almofadados, não como nuvens que se desfaziam. Os sentia lá, intactos, só eles, como se tivessem vida própria. Como se pertencessem a outra realidade. Não sei ao certo o que Elisa pensava naquele momento. Acho que não pensava. Acho que era vazio, assim como eu tinha por dentro. Vazio que clamava por ser preenchido eternamente.

Tudo parou. A música parou, as luzes se apagaram, os pelos se acomodaram e os lábios foram nuvens dispersas de novo. Tudo parou quando o vazio fez-se maior do que meu corpo poderia suportar. O coração parou por um instante de bombear aquele momento. Acordei tragando o vazio. Acordei querendo respirar mais o perfume de Elisa do que oxigênio. Acordei sozinho, entre os meus lençóis. Acordei escutando gatos remexendo as lixeiras e mendigos querendo espeto de gato. Acordei com as fotos arrumadas na gaveta. Acordei sem o amor que vivia na minha cabeça.




A TV exibindo o nada. Sintonizada numa ode ao vazio. Os gatos lá embaixo cansaram do lixo e foram passear. Cada uma das suas sete vidas era mais excitante que a minha. Mamãe tricotava, sonâmbula, o vazio. Tricotava um cobertor eterno que voaria pela janela e daria a volta ao mundo.

Ia à cozinha todas as noites tomar um copo de água com um vácuo no estômago. Todas as noites eu passava pela sala. Esperava alguma sombra se mover. Esperava um sorriso fácil de Elisa em meio à escuridão. Não funcionava muito bem. Os cheiros permaneciam na cabeça, mas não atravessavam o nariz. Uma foto polaroid em branco no criado-mudo, um risco, uma silhueta feminina, as nuvens. Dormia cada dia mais cedo. Quem sabe, amanhã.

Fome de amor


- Aqui estão suas rosquinhas – disse Joaquim, o padeiro, entregando um pacote volumoso com nódoas de gordura a Clóvis, cliente assíduo.

- Obrigado – respondeu. Dirigiu-se ao caixa e pagou.

Clóvis acordava cedo e ia direto à padaria. Aos poucos, extasiado pelos aromas, munia-se de quitutes. Já tinha fritado ovos e bacon, mas precisava de algo doce. Hoje, levava consigo 14 rosquinhas tamanho médio polvilhadas de açúcar.

Seus passos eram lentos. Seu suor, abundante. Clóvis olhava abaixo do pescoço, e por mais refrescantes que fossem as roupas, sempre estavam ensopadas. Ele parecia derreter, mas sem perder o volume.

Não conhecia quase ninguém no bairro. De manhã cedinho, voltando da padaria de seu Joaquim, encontrava com bastante gente que lhe acenava: garotos musculosos praticando cooper, velhas senhoras com suas maquiagens fétidas e cachorros podados. Se lhe associassem a algo, certamente seria às rosquinhas. Clóvis e suas rosquinhas. Pelo menos era algo que valia a pena.

Sentia a caminhada até casa cada vez mais cansativa. A idade chegando – 30 anos comemorados semana passada – e o corpo pesando. O pensamento era paradoxal, mas Clóvis parecia flutuar, como um astronauta no espaço. Astronautas comem pílulas. Ele estava na terra, comia coisas mais densas.

Enxugou com o braço direito as gotas de suor que brotavam de sua testa. O outro braço segurava firme o saco de rosquinhas. Ainda quentes, elas exalavam um aroma irresistível que penetrava em seu nariz.

Ao caminhar, as coxas de Clóvis embatiam-se. Uma querendo ocupar o espaço da outra, elas lutavam por um vácuo no corpo estufado. Um embate de texturas gelatinosas, convulsivas, lembrando os grandes pedaços de carne que balançavam de lá para cá nos ganchos dos frigoríficos.

- Clóvis, clóvis! - disse uma voz vinda de trás.

Uma mão robusta apertou seu ombro e o fez dar meia-volta.

- Há quanto tempo! - continuou o homem. - O que anda fazendo da vida? Ainda trabalhando naquele serviço de atendimento ao consumidor? Por que não aparece para tomarmos uns chopes? E o churrasco? Você ainda faz aquele churrasco divino? Aquilo era mais do que uma arte!

Quem era aquele homem que o encheu de perguntas? Será que ele havia se enganado, confundido Clóvis com algum amigo, algum parente? Não. Pensando bem, ele tinha um rosto familiar. O rosto do homem estava arquivado nas lembranças de anos atrás... mas, quem seria? Claro! Como pôde esquecer da pinta preta, próxima ao queixo, de onde saiam três fiapos tesos.

- É mesmo. Há quanto tempo, Augusto.

A parte difícil ele já passou: reconheceu aquele primo distante com quem fez questão de cortar relações há anos. Agora era pensar em como responder tudo aquilo de forma rápida e evitar mais perguntas. Só o que valia agora era chegar em casa e saborear aquelas rosquinhas crescidas.

- Eu não trabalho mais lá e ando um pouco sem tempo para sair de casa. Agora, se me permite, tenho de ir - Clóvis disse, conciso, e retornou ao seu caminho. Dados alguns passos, Augusto, com um sorriso morno no rosto, falou:

- O que esconde aí, Clóvis?

A pergunta soava mais como um pedido, pois no saco claramente lia-se: “rosquinhas”.

Clóvis voltou, andou lentamente, chegou próximo a Augusto e respondeu:

- São só rosquinhas. Sempre as compro em uma padaria que fica a duas quadras daqui.

- Posso experimentar uma? - disse Augusto, com os olhos fitados no pacote de rosquinhas.

- Sim - Clóvis disse, sem tanto ânimo. Desembrulhou o pacote e aproximou-o de Augusto: - Tome.

Augusto tirou de dentro uma rosquinha, deu uma mordida e disse:

- Huuummm... São maravilhosas! - Lambeu um resto do recheio que se esparramara pelo canto da boca e tornou a olhar Clóvis.

- Eu gosto delas - ele disse.

Clóvis sentia um desejo incontrolável de comê-las, todas! Agora! Mas não podia, aquelas todas não existiam mais. Eram apenas treze, não mais quatorze. Ele também não podia comer tudo, ali, na rua. Tinha primeiro de chegar em casa, no seu recinto sagrado, envolto de aromas, de embalagens, de gostos sintéticos, de latas para se abrir, de comida de ontem, de hoje e amanhã. Comer... Ah! Comer... É a resposta para todos os desejos. Todas as frustrações, deglutidas, engolidas, digeridas. Todos os sabores e prazeres dentro de seu corpo, revolvendo-se até deixá-lo para mais uma carga de tudo isso.

- Foi um prazer encontrar com você, Augusto, mas marquei com o médico daqui a meia hora e tenho de ir.

Não existia médico nenhum, muito menos algum prazer obtido em ter se encontrado com Augusto.

- Ah! Não faz isso comigo não. A gente não se vê há séculos e você vem com esse papo de que precisa ir? Vai fazer o que no médico? Por acaso algum exame de próstata antecipado? Hahaha... – Augusto gargalhou, deixando ainda mais evidente seus enormes dentes, que sempre ficavam de fora da boca.

“Muito engraçado”, Clóvis disse para si mesmo. – Não... Eu só quero ter informações sobre um novo tipo de dieta que ele me indicou.

- Clóvis! Você só pode estar de brincadeira, é isso. Nunca foi de se preocupar com dietas. Gostava de aproveitar a vida, de beber e se esbaldar num churrasco e agora me vem com essa... – Augusto balançava a cabeça em tom de reprovação.

- Eu preciso disso, senão, nem sei mais quanto tempo ainda tenho de vida.

Clóvis não se preocupava exatamente quanto tempo permaneceria vivo, mas sim, quanto tempo permaneceria comendo. Um compromisso inadiável era a desculpa perfeita para, nesse momento, livrar-se de Augusto.

Olhando-o de cima a baixo, até mesmo um imprudente como Augusto percebia ao que Clóvis se referia.

- Não exagera, vai... São só... São só alguns quilinhos. Você compra um daqueles aparelhos de ginástica da TV e perde tudo em uma semana – disse Augusto, tentando amenizar a situação.

- Olha, obrigado pelo conselho – Clóvis disse, olhando nos olhos de Augusto, - mas eu prefiro ter certeza de que... Você sabe... Esses pneuzinhos não estão me afetando tanto assim. Agora, preciso ir.

Clóvis direcionou-se a seu caminho e tornou a andar. Augusto ficou parado, contemplativo, solitário, como se agora Clóvis fosse seu único amigo.

- E a Soninha? – Augusto gritou, desesperado por mais alguns instantes de conversa.

Clóvis voltou para responder:

- O que tem a Soninha? – Perguntou, ríspido.

- Sabe, a Soninha, aquela garota com quem você dizia que costumava sair... – Augusto acrescentou, como se tentasse ganhar tempo para dizer algo.

- Não sei mais dela.

Clóvis realmente não sabia nada sobre Soninha e nem nunca soube. Soninha nunca existiu. Era só uma desculpa usada por Clóvis para ludibriar seus amigos e mostrar que ele fazia pelo menos algum sucesso com as mulheres.

- Ah, que pena! Tem seu telefone? – perguntou excitado – Porque, se você não se importar, talvez eu possa marcar algo com ela, um jantar, ou um cinema. Sempre me falou tão bem dela que fiquei curioso. Mas claro, tudo, se você não se importar...

Clóvis meneou a cabeça, sugerindo que não se importava.

- Eu juro que não me importaria, mas infelizmente não tenho mais o número de telefone dela. Fizemos questão de cortar qualquer tipo de relação na última vez que nos vimos. Agora é sério, Augusto, tenho de ir.

Augusto agradeceu a “boa vontade” de Clóvis e deu-lhe um abraço brusco, fazendo-lhe derrubar o pacote de rosquinhas.

- Não, não tem problema – Clóvis adiantou, apanhando o pacote do chão e dando uns tapinhas para tirar a areia.

Os dois finalmente tornaram a seguir seus rumos. Clóvis, aliviado por ter se livrado de uma das pessoas mais inconvenientes que ele já conhecera.

“Lar, doce lar”, ele pensou ao entrar e fechar a porta de sua casa.

E não era força de expressão. Era mesmo um lar com açúcar para todos os lados. Não só açúcar, mas, corantes, aromas, conservantes, sabores artificiais e tudo mais que engordasse e fizesse mal.

Clóvis pegou o controle da TV, que tinha os botões todos desbotados, engordurados pelas suas mãos sempre impregnadas de comida, e ligou a televisão. Nada de atrativo no ar, porém, sempre era mais prazeroso comer em frente à tela da TV. Esse era o ambiente ideal para se acomodar, relaxar, afundar na poltrona e ser acometido por uma sonolência que não o deixava dormir, somente administrava um estado apático que ia se desdobrando em uma linha de tempo inimaginável. A passividade ia se multiplicando, se abrindo, como um leque. Tomar qualquer atitude, que não fosse comer e manter os olhos entreabertos, era sofrivelmente difícil. Por isso mesmo, para desocupar a bexiga, ele esperava horas e horas. Já passou por sua mente usar uma sonda para as necessidades fisiológicas. Acabou desconsiderando esse pensamento bobo.

Na sala, havia um grande espelho arredondado, com uma bela moldura de madeira, talhada à mão. Herança de sua bisavó. Sem conseguir distrair-se em frente à televisão, Clóvis olhou para o lado, viu parte de seu rosto refletida no espelho. Ele não lembrava ser tão rechonchudo assim. Afastou-se mais, com o intuito de se ver completamente. As maçãs do rosto arredondadas e lustrosas brilhavam com o pouco de sol que entrava pelas frestas da janela. Clóvis chegou mais perto, e mais perto... e mais perto. Parecia enorme. Cada vez mais enorme, ao contrário de seu pênis. Ele lembrou-se, sem complexo algum, mas isso ocorreu em sua mente. Não pôde evitar. Baixou as calças. Lembrou-se há quanto tempo não fazia sexo, há quanto tempo alguém não o desejava. Procurou, espremendo a mão por entre os pelos pubianos até achar o pênis. Clóvis não tinha uma boa ferramenta, mas também era mais romântico do que isso. Até considerava o sexo um supérfluo.

Vestiu-se e foi ao computador. No lixo eletrônico, havia um e-mail, uma dessas mensagens em massa, sobre amor. Falava de pessoas solitárias encontrarem outras pessoas solitárias, marcarem encontros, terem uma vida social e afetiva normal. No e-mail também, uma montagem malfeita, com galãs de sorrisos esbranquiçados e lindas mulheres também sorrindo.

Clicou no centro, em um dos casais felizes da montagem. Um site se abriu e ele entrou no chat. A maioria dos participantes eram homens, que, empolgados, falavam sem parar. O texto corria rápido na tela e tudo formava uma grande confusão visual.

Lá pelo final da lista de usuários, Clóvis encontrou uma moça que usava o apelido de “Patrícia Abajur”.

- Patrícia Abajur? – perguntou ele, aproveitando a deixa para iniciar uma conversa.

- Sim. É apenas um trocadilho, no sentido que eu passo todo o tempo acessa...

- Engraçado o seu trocadilho – disse, enquanto fora do mundo virtual tudo transmitia o mais absoluto e inabalável silêncio.

- Talvez ele seja mais enigmático do que engraçado, já que você é a sexta pessoa que me pergunta isso hoje.

Clóvis estendeu-se a pensar no que iria responder já que seu pressentimento dizia que a conversa poderia tomar um rumo não muito confortável.

- Me desculpe – Pronto. Era simples e objetivo. Mostrar que sabia se retratar, mesmo tratando-se de uma futilidade, era um bom sinal.

A conversa foi seguindo, morna, constante, mas ainda com um fio de esperança unindo as palavras dos dois. Patrícia estava enfadada, porém, dessa vez, não encontrou pela frente um maníaco sexual.

As velhas e redundantes perguntas de sempre brotavam sem sentido algum. Eram apenas formalidades esperando algo mais interessante, só que Clóvis insistia:

- O que você costuma fazer pra se divertir?

- Ah, não são muitas coisas, mas quando tenho tempo, costumo ir a algumas boates aqui por perto – respondeu Patrícia, quase de imediato.

Antes que Clóvis pudesse formular uma próxima pergunta, ela disse:

- E você, o que faz para se divertir?

“Eu, o que eu faço para me divertir?”, pensou. “Hum... São tantas coisas, afinal, eu sempre estou de folga.” “O que eu posso dizer que faço para me divertir? Videogame, não, não... Pôquer, também não... Nem dormir, nem praguejar contra os vizinhos. É mais difícil do que eu imaginava... Já sei! É isso!”.

- Eu sempre vou a alguns restaurantes que conheço. Gosto de experimentar as novidades – escreveu com confiança.

- Então você se interessa por gastronomia?

- Digamos que sim.

Isso significava ganhar alguns pontos positivos com Patrícia. Pelas experiências que tivera na vida, ela preferia homens com sensibilidade na cozinha. Quase sempre eles a entendiam melhor e é fato que ela praticamente venerava os que chegavam a lhe oferecer pratos requintados por eles mesmos preparados.

- Então eu posso passar na sua casa por volta das nove da noite?

- Combinado. Às nove então – confirmou Clóvis.

No primeiro contato virtual que tiveram, os dois já fizeram questão de marcar um encontro. Ambos não se mostraram como realmente são. Suas fotos ficaram omissas, enquanto as palavras e o mistério de imaginar quem se encontrava por trás daquelas mensagens ditavam o tom daquela conversa.

Clóvis mentiu copiosamente, tomando de exemplo para sua aparência fictícia os modelos másculos, esbeltos e de sorriso reluzente do e-mail que recebera. Patrícia forjou a descrição de sua aparência folheando rapidamente algumas revistas voltadas para o público feminino, recheadas por lindas celebridades de biquíni, exibindo suas boas formas, que se tornavam ainda mais atrativas com o reparo de imperfeições através do Photoshop.

Os dois mentiram. Clóvis mentiu para Patrícia, Patrícia mentiu para Clóvis. Absorvidos pelo próprio escapismo, não se deram conta que também poderiam estar sendo enganados.

Tudo se manteve como dito. Dez minutos para o excepcional encontro. Clóvis terminava de arrumar a mesa da sala, dispor os pratos e os talheres. Jogou pela janela duas rosas murchas que permaneciam num vaso sobre a mesa e as substituiu por falsas – flores de plástico que imitavam margaridas. Checou o cheiro das axilas, o excesso de suor. Mais uma vez, foi ao espelho. Deslizou a mão sobre a velha moldura de madeira do espelho, como se aquilo fosse um amuleto da sorte.

Enquanto isso, Patrícia já havia terminado de se aprontar. Dessa vez, fora mais rápida do que o de costume, porém, mais caprichosa. Em frente a uma pequena penteadeira que, em relação ao seu corpo, parecia ser feita para anões, ela virou o pescoço, jogou o cabelo para o lado e tirou o excesso de batom. Apagou a luz e voltou a ligar para ver que horas eram num relógio fixado muito alto, quase tocando no teto. Os ponteiros mostravam oito e quarenta e cinco da noite, entretanto, aquele relógio estava atrasado. No horário, já passava de nove da noite.

Clóvis, esperando ansioso para abrir a porta e conhecer a linda patrícia que não existia, parecia bastante temeroso. Fechava os olhos e imaginava aquela mulher perfeita, de olhos que pareciam mais esmeraldas, cabelos sedosos, esvoaçantes e vivos, de lábios macios, fartos e sensuais, da pele límpida como o mais alvo leite e tremia-se dos pés à cabeça só de pensar. Principalmente quando pensava sobre o constrangimento da iminente rejeição que ele poderia sofrer por parte dela. Que fosse sorriso, rejeição, e um pedido de desculpas como na conversa anterior àquela situação. Que quando ela o visse, não sentisse náuseas piores do que quando se farta de comida em alto-mar e se vomita a cada oscilação da navegação. Como fazia sempre, Clóvis pensou longe. Imaginou uma cena perturbadora: a campanhinha tocava, ele corria em disparada para atender. Assim que abria a porta, era atingido por um jato multicor, viscoso e ácido, saído direito dos lábios voluptuosos de Patrícia. Ela o olhava por alguns segundos naquela situação grotesca, como quem sente pena, não por aquilo ter ocorrido, mas por alguém, como ele, Clóvis, ter nascido, e vai embora, com o batom intacto. Clóvis, alucinado e agindo como um animal, passa a lamber-se desesperadamente, sorvendo aquele fétido vômito que ensopava toda a sua roupa.


Patrícia percebeu que os ponteiros do relógio não se mexiam mais.

- Maldito relógio! – ela gritou, e foi correndo procurar o de pulso.

Quando chegou à sala, o botão que fechava a calça arrebentou-se e saiu quicando pelo chão escorregadio até esconder-se embaixo do sofá. Patrícia não percebeu e acabou procurando por toda a sala, até mesmo em um quarto contíguo, na esperança de encontrá-lo e pô-lo de volta no seu lugar. Só assim ela poderia conseguir dar um jeito naquela calça, que agora estava escandalosamente aberta. Procurava rastejando, de quatro, com seus seios descomunais quase arrebentando o sutiã e todo o resto de seu corpo morbidamente obeso sofrendo a lei da gravidade. Em pouco tempo, estava exausta, gotejando suor pelo chão. Foi aí que ela lembrou-se da caixinha de costura. Levantou-se, foi ao quarto e a tirou da penteadeira. Mas lá só havia alguns trapos, linhas de costura e agulhas velhas. Patrícia desejava muito usar a calça nessa noite, sobretudo porque a grande maioria de suas roupas já não lhe cabia mais. “Como eu pude não perceber isso, como eu pude?!” repetia para si mesma, a todo o momento. A solução desesperada que ela encontrou era: engolir a barriga.

Patrícia inspirou com a força que podia, até sentir dor nos pulmões. Manteve presa a respiração, e costurou, costurou o mais rápido que pôde o botão daquela calça. Deu voltas e voltas com mais linha para assegurar que aquele constrangimento não lhe aconteceria logo mais. Com a face arroxeada, ela finalmente solta o ar de uma vez e se repreende, no mesmo instante, sendo mais comedida, já que ainda não estava tão convencida sobre a segurança da calça.

Clóvis, já não mais atordoado pelo seu delírio pré-encontro, lúcido e menos nervoso, se encontra bastante indignado. Sente-se humilhado, passado para trás, já que tem a plena certeza de que Patrícia o enganou. Aquela ansiedade toda o matava, o matava a cada segundo. Patrícia não deveria ser tão ingênua assim em achar que encontraria um cara perfeito num bate-papo de internet. Era óbvio que não. Como as outras, ela só desejava mesmo lhe passar a perna, pregar mais uma peça e tirar proveito disso. Deixar o gordinho, esperando em casa. Deixar o gordinho fazendo receitas culinárias de revistas. Deixar o gordinho apreciando aquele banquete e sem poder experimentar um pouquinho sequer. Clóvis deu um soco no ar. Comemorava a bela ideia que acabara de ter. E por que não? E por que não comer aquilo tudo já que a vadia não ia mesmo aparecer. Era o pensamento que lhe seguia, contudo, algo ainda refreava seus instintos. Foi apenas questão de tempo para que esse algo dissesse adeus. Clóvis rendeu-se ao banquete que havia preparado. Não era a melhor coisa que comera na vida, mas, ainda assim, era muito, era quente e descia pela garganta cheio de volume. Em pouco tempo, fartou-se, porque. em pouco tempo não sobrara mais nada. Recostado no sofá da sala e olhando fixamente a mesa revirada, Clóvis parece ter acabado de atingir um orgasmo. Seu prazer é tão imenso e aterrorizante que seus lábios parecem carregar um sorriso, involuntário que se convulsiona por instantes. Naquele momento, ele estava totalmente entregue, desprovido de qualquer força para tirá-lo dali. Certamente iria passar a noite naquele local, estendido no chão, não fosse o toque estridente da campanhinha.

“Meu Deus! Meu Deus!” ele gritou com a mão frente à boca.

Clóvis estava desesperado, descabelado, ensopado. Levantou-se bruscamente quase desfalecendo e correu ao espelho. Na esperança de contornar a situação, ele abotoou como pôde a camisa e tentou corrigir a posição da gravata. Passou rapidamente a mão entre os cabelos e borrifou um perfume velho na nuca, no peito e nos braços. Voltou para sala gritando: “Já vou! Já vou!” e recolheu os pratos e talheres de cima da mesa. Clóvis olhou para porta, respirou fundo e enxugou pela última vez o suor persistente em sua testa. Ainda havia uma esperança. Ainda podia ser um inquilino para reclamar de algo. Ainda, quem sabe, era tempo de ele lidar com o de costume.

- Olá! – ansiosa, Patrícia disse, com a porta por ainda se abrir totalmente.

E Clóvis terminou de abrir a porta.

- Olá! – apenas replicou.

Ela sorriu com uma cara de quem acaba de sofrer uma tremenda frustração.

- Você deve ser a Patrícia – disse Clóvis.

Era claro que sim. Claro que era Patrícia. Só mesmo o pensamento sobre o possível inquilino para fazê-lo perguntar isso.

- Sim, sou eu – e ela perguntou em pensamento: “Você deve ser o Clóvis, certo? Porque não era nada do que eu imaginava”.

O choque ocorrido os deixou perplexos. A surpresa em descobrir a mentira do outro, fez com que a situação incomodasse mais ainda. Clóvis não queria uma gorda. Patrícia não queria um gordo. Por mais que os dois fossem e soubessem como é não fazer parte do padrão de beleza imposto pela sociedade, eles não se viam como gordos. Não carregavam consigo a imagem da qual os outros tinham deles.

Clóvis, mesmo decepcionado, tentando se mostrar gentil, disse:

- Por favor, entre.

- Não – disse Patrícia, com a cara cerrada.

- Mas... – Clóvis balbuciou, enquanto tentou segurar seu braço.

- Eu não posso aceitar o convite de alguém que mente tão descaradamente.

- Eu, eu minto descaradamente?! Primeiro aceite os fatos. Nós dois enganamos um ao outro. Eu só queria alguém que... Alguém que me fizesse feliz, que entendesse meus sentimentos e que gostasse de mim como eu sou por dentro.

Era um clichê. Patrícia já estava cansada de ouvir coisas daquele tipo nas novelas. Mas algo lhe comoveu. Algo com um quê de sinceridade.

- E quem lhe disse que não é esse também meu pensamento?

Foi aí que ela entrou. Deu dois passos e entrou. Sentiu ainda o aroma da comida que Clóvis havia feito e que não mais estava lá. Aproximou-se de Clóvis e largou suas mãos em seus ombros. Os dois entreolharam-se ardentemente. Os joelhos de Clóvis tremiam, mas Patrícia não notou. Ele pensava sobre o quanto ela era feia, mas, mesmo assim, já sentia uma estranha atração unindo seus corpos. De nenhuma parte existiam mais palavras para narrar aquele momento. As bocas se tocaram, os corpos sucumbiram e de olhos fechados, os dois pareciam dançar valsa, pura e sincronizadamente. Sem perceber, já estavam do lado de fora do apartamento. Aquela sensação única de arrebatamento só podia ser classificada como amor. O amor chegou, como que varrendo toda a frustração perante à vida durante anos e anos embora. O amor de peso – não só como força de expressão – vendou-lhes de uma tal forma que não fora possível ver a escada nem segurar em seu corrimão. Patrícia embaixo, Clóvis em cima. Isso teria duplo sentido, não fosse o momento tão sublime. Olhos vidrados, de morto. Um fiapinho de sangue e saliva escorrendo pelo canto da boca. Praticamente estranhos, e agora, ligados eternamente. Seriam descobertos amanhã quando o faxineiro levasse seu esfregão até ali.

Ilha


Não sei há quantos dias estou aqui, nem sei como vim parar aqui. Mas agora respostas são as coisas com as quais eu menos me importo. Sei que meus pés doem e as minhas costas também. Para qualquer direção que eu olhe só vejo o mar me rodeando. Quando fecho os olhos escuto o barulho das ondas, e, às vezes, de algum pássaro. Dificilmente capturo animais para me alimentar. Vivo de frutinhas. Bebo água da chuva. Parece que estou sempre dopado, com uma sensação de desmaio que nunca me abandona e aumenta quando o sol forte incide na areia. Tenho apenas um sapato do par. No outro pé enrolei um pano velho. Cada dia caminho menos, e a cada dia afundo mais na areia. Com as pernas estendidas e as mãos para trás apoiando meu corpo, eu fico pensando e a imagem das coisas vai ficando turva, parece que tudo aquilo não passa de uma ilusão de óptica. Como se estas palmeiras, estas folhas, esta imensidão de areia, tudo isto, fosse um sonho ruim.

Fico tanto tempo sem nada dizer que tenho até medo de não conseguir mais falar. Quando eu era criança, achava que ficar por um longo período num quarto escuro me deixaria cego. Eu tinha de me certificar: abria os olhos e procurava algum ponto luminoso. Era um alívio saber que ainda podia enxergar. Aqui, o que eu enxergo é o que me cega, e não falo apenas do sol. Meus lábios rachados, feridos, partiram-se como se tudo o que eu tivesse para dizer fossem lâminas afiadas. Talvez eu não consiga mais falar, talvez minha língua dê um nó e eu morra asfixiado. Tenho medo. Prefiro não tentar. Apenas pensar nas palavras me contenta e aumenta também uma dor que me rasura inteiramente por dentro. É uma dor tão grande que criei até palavras para descrevê-la, mas não as escreverei aqui, porque já esqueci delas, não pela dor ter passado, mas porque sempre crio novas palavras quando ela dói mais do que o comum.

Os monges são todos uns mentirosos. A única forma de se chegar a um estado de elevação espiritual onde não passe pela nossa cabeça nenhum pensamento é morrendo. E, antes de morrer, a gente pensa muito na morte. Ainda não me perguntei por que estou vivo e por que permaneço vivo. Talvez seja porque morrer me inspira alegria, e meu estado é o de mais profunda tristeza.

O vento passa tão forte pelos meus ouvidos que é como se eu pudesse escutar por um segundo o turbilhão de vozes perdidas da cidade grande. Por um momento acredito que todas as vozes vêm até mim, mas nenhuma chega intacta. Elas vão perdendo substância e o que sobrevive é um fantasma incomunicável.

Não penso no meu passado. Não penso no asfalto enquanto toco a areia. Não penso em comida japonesa enquanto como uma manga. Não penso nas pinturas da sala da minha casa enquanto olho o céu. Não penso na cerâmica gelada do vaso sanitário enquanto procuro uma moita. Eu só penso no que eu não fiz, no que eu tinha vontade de fazer. Penso no filme que saiu de cartaz e não assisti, no filhote de labrador do pet shop que sempre latia quando eu passava e que não comprei, no programa de exercícios que desenvolvi mas que nunca segui, naquele disco velho que tocava no brechó da esquina. Quem era mesmo que cantava? Penso muito nessas coisas agora intangíveis. Penso em um nível que chego à vertigem, que me dá um suor frio e meus olhos se enchem de lágrimas. Penso muito, principalmente na moça da lanchonete, a Elen. A moça que eu quis pra mim mas não tive coragem de confessar isso a ela. Lembro dos seus cabelos castanhos escuros, dos seus lábios rosados e pequenos, dos seus olhos intensamente pretos, do seu jeito dócil de falar quando me servia um sanduíche. Lembro do seu crachá: Elen. Era bonitinho aquilo, fixado no seu peito: Elen. Refletia a luz fluorescente. Mas tudo entre eu e Elen ficou apenas nos negócios. Por isso eu penso muito. Muito no que eu não fiz.

Agora eu estou fazendo, para não pensar depois. Acho que se eu pudesse fazer tudo o que não fiz, voltaria atrás em relação ao Monge. Não seria necessário morrer para esvaziar minha caixa encefálica. Eu faria tudo, tudo que deixei para trás e me sentiria pleno, como um babaca. Agora estou fazendo, escrevendo neste papel, com esta caneta de hotel. Não quero que pensem que isto é um S.O.S. Não estou pedindo ajuda, só estou fazendo algo por mim, a única coisa que eu ainda posso fazer. Então, se alguém vir isso precipitadamente, eu não existo mais. Virei terra, folha e água. Terra, folha, água e papel. E quando eu estiver guardado numa instante, raro, façam coisas, as coisas de vocês.

Vai garrafa, continua! Ainda tens um rumo a seguir.

sábado, 6 de março de 2010

Abelardo


Uma, duas, três, quatro, cinco. Cinco correntes Abelardo levava no pescoço. Todas fruto da safra de quando ele era cafetão. Bons tempos aqueles, mas, assim como nas máquinas caça-níquéis, quando se está ganhando, há o momento em que se deve parar, senão, pode-se perder tudo. E foi exatamente isso que ele fez. Parar e curtir a vida. Poder relaxar com um drinque na mão sem se preocupar se uma puta adoeceu, se a Lorena quer matar a Cláudia ou se a Flávia prefere trabalhar com o Loyola. Sem mais acordar no meio da noite achando que alguém deseja matá-lo porque uma de suas garotas faz ponto em uma área que já tem dono.

Aos 40, mas com corpo de 30, Abelardo só quer saber do baile de gafieira às sextas e dos ensaios com sua banda de jazz aos domingos. O resto dos dias da semana, ele vai à caça. Vestido com cetim e usando um perfume que irrita os narizes mais sensíveis, checa sua performance em frente ao espelho antes de sair de casa. Para Abelardo, seus trejeitos são sua arma fundamental. Todos os seus movimentos são calculados e fazem parte de um jogo de sedução que começa antes mesmo de ele pôr os pés fora de casa. Tamanha dedicação é o segredo da bonança com o que mais lhe dá prazer: mulheres feias.

E quando digo feias, não são desajeitadas ou mal-tratadas, são cronicamente feias. Mulheres que parecem um arbusto ou vindas de outro planeta. Abelardo já teve muitas mulheres. Feias, bonitas, comestíveis. Ele já provou de todas. Mas foi enjoando gradativamente da maioria, da maioria de beldades que passava por sua mão. Foi aí então que, em resumo, sobrou o que inconscientemente ele mais primava.

Eram as feias, libertinas, que em sua experiência de vida sempre foram as que mais se entregavam. Sempre foram as que iam às estrelas sem necessitar de um anel cravejado de diamantes ou de um carro importado. Essas gozavam de verdade. E tal entrega, plena e singular, fez Abelardo não só amar cada uma dessas mulheres, como também respeitá-las de uma forma inteiramente nova para ele.

A sua veneração pelas feias, quase sempre mal-amadas, o inspirou a escrever sobre elas. Mesmo que de forma superficial, entre aquelas linhas rabiscadas num pequeno livro de anotações, ele tinha a recordação de cada uma. Da Anita, da Alstofa, da Raimunda, da Ofélia, da Margarete, da Zilú, uma velhinha tarada de 66 anos. Da Pauliceia. Ah! e como esquecer a Pauliceia? Aquela mulher marcada pelo tempo, misteriosa e de olhinhos tão pequenos por trás daqueles óculos fundo de garrafa. Abelardo a encontrou num dia sem sol, sentada no chão, chorando como uma louca e com os cabelos crespos desgrenhados. Ele chegou de mansinho, com todo aquele cavalheirismo e ar de quem tem todas as respostas para a vida. Foi aproximando-se, perguntando, observando e conseguiu por fim arrancar a história toda de Pauliceia. Seu marido, um canalha sem proporções, a traía há dez anos e, não contente, bêbado, ainda a espancava como quem bate em um saco de areia. Cansada de tanto sofrimento, Pauliceia lutava para conseguir divorciar-se, mas ele, sobrevivendo do trabalho da mulher, a ameaçava de morte constantemente e ainda prometeu ficar com a guarda dos três filhos do casal, alegando que ela sofria de problemas mentais.

Pauliceia poderia ter pedido a ajuda de um profissional como Abelardo, acostumado com a guerra das ruas e experiente em como dar um belo sumiço em alguém. Mas ela deixou se levar pelos sentimentos. Nada fez para encobrir sua ação equivocada. Simplesmente saiu às ruas com as mãos ensanguentadas, depois de desferir 20 golpes com a tesoura que usava para cortar tecidos, por todo o corpo do marido. Foi naquela situação que Abelardo encontrou Pauliceia lastimando-se por agora saber que não veria os filhos durante muito tempo.

Com um afago, tudo foi se acalmando. As mãos grandes e negras de Abelardo apalpavam Pauliceia e as pontas dos dedos corriam em volta da aureola de seus seios caídos. E então, ela foi convencida a ir a um motel.

Pauliceia percorria a corda bamba que delineava o campo da sanidade e o da loucura, e em todo o tempo que passou com Abelardo, ela foi um misto dos dois. Ele pouco se importava, mas, por via das dúvidas, quando escutou o relato da boa moça que matou o homem mau a sangue frio, tratou logo de tirar a arma da gaveta e pôs do seu lado, como uma garantia de que aquela noite de amor não fosse demais para ele.

Abelardo nunca mais viu Pauliceia, porém, soube que ela estava presa, cumprindo pena por ter assassinado o marido. Neste momento acabava a história dos dois. Em um próximo, começaria outra e outra e outra história envolvendo Abelardo e as mulheres por ele seduzidas. Seria assim até o fim das contas.

Podia parecer uma missão divina ou então a temporada de caça às feias, mas não era nada disso. Era simplesmente o que Abelardo sentia e necessitava para apagar seu fogo. Eram tantas, tantas mulheres – uma em cada noite – que a memória insistia em falhar, mas a de ontem ainda estava fresca, tanto, que lhe umedecia os lábios.

Cíntia, olhos esbugalhados, mãos peludas, testa vincada, braços compridos e grossos, dentes tortos. Abelardo mal conseguiu segurar o que havia por baixo de suas calças quando a viu. Seus lábios umedeceram da mesma maneira que acontece quando agora pensa nela.

Apoiando-se com os ombros em cima da mesa, ela devorava aquele sanduíche enorme, abarrotado de ingredientes que pulavam para fora do pão. Abelardo foi direto e sentou-se bem em frente à Cíntia. Ela, apavorada com aquele estranho que, calado, não parava de olhá-la, tremia, sem saber o que significava aquilo. Abelardo, por sua vez, foi correndo a mão em cima da mesa de mármore, brincando com os dedos, até tocar em Cíntia.

“Será que nós dois poderíamos ir juntos a um local mais reservado?” ele disse. Ao invés de um sim, um não, ou um talvez, Cíntia tossiu. Tossiu como um porco em meio ao abate. Engasgada, sufocada e roxa, ela pedia ajuda com o olhar desesperado. Todos em volta olharam, mas ninguém tomou nenhuma atitude. Exceto Abelardo, que a qualquer custo iria salvar sua futura amante daquela noite. Pôs-se a golpear a robusta mulher até que aquele corpo estranho que a fez engasgar saísse. Depois de muito tentar, lá estava a rodela de tomate que voou pela garganta de Cíntia. O tomate assassino.

Aliviada e feliz por ter sobrevivido ao episódio traumático, Cíntia sentia um enorme sentimento de gratidão a Abelardo. Este, era corroído por um turbilhão de emoções, todas elas tangidas por um tesão arrebatador. Era agora ou nunca. Era a hora de colher a bonança por ter sido um herói.

“Eu quero ter você entre os meus braços, entre os meus lençóis. Eu quero ter você esta noite” disse Abelardo com o olhar mais brega deste mundo, e com o coração mais aberto também.
Sem pestanejar e com lágrimas no canto dos olhos, Cíntia disse que sim, como quando se aceita um pedido de casamento ou então quando se sobe no cavalo do príncipe encantado.
Foram os dois a mais uma noite de amor para Abelardo, a uma exceção para Cíntia. Foram os dois copular como animais ensandecidos. Foram os dois amar como os mais puros gênios da poesia.

Na mesma lanchonete, uma linda e bulímica mulher que comia pratos gordurosos, como todos que eram servidos ali, estava prestes a se dirigir ao banheiro para lançar tudo descarga abaixo, quando ficou pensando no que acabara de ocorrer. Em como Abelardo, aquele homem grande, sedutor, negro, e, provavelmente, bem dotado, tinha agido há pouco.

Ela, uma mulher frígida, que nunca havia se apaixonado ou sentido tesão de verdade por alguém, agora sentia as duas coisas por aquele homem que ali passou. Glória, como era seu nome, sorriu introspectivamente, com a calcinha molhada e já certa de seu êxito em conquistar Abelardo. Bonita e rica, ela podia conseguir qualquer coisa que desejasse, ou pelo menos era assim que pensava. Sobre isso, não podia ser diferente: Abelardo seria seu, custe o que custar.

É manhã. A campainha da casa de Abelardo toca. Estranho, já que ninguém costuma ir até sua casa. Ele vai, desconfiado, atender. Pela vidraça fosca da porta, enxerga com dificuldade algo que parece ser uma silhueta feminina.

Ao abrir a porta, lá estava ela, aquela mulher estranha chamada Glória. Com um chapéu vermelho e um casaco de pele de raposa, ela se apresenta:

“Olá. Meu nome é Glória Alívida."

Abelardo, com sua extensa ficha de conquista, nunca havia visto mulher de tamanha beleza. Sentiu automaticamente enorme asco. Exatamente por isso, ele permaneceu imóvel, colado junto à porta, olhando para os luxuosos sapatos de Glória manchados de lama.

“Você não vai dizer nada?”, falou Glória, irrompendo o silêncio.

Abelardo refletiu por alguns segundos. Pensou em trancar a porta e ligar para a polícia. Sentia medo daquela mulher.

“Eu não estou me sentido confortável para falar, então, agradeceria se a senhorita pudesse ir embora.”

“Mas não, eu não vou embora”. Ela empurrou Abelardo da frente, fechou o guarda-chuva e entrou de uma vez.

“Mas... mas o que você está fazendo, sua maluca?!”, disse Abelardo, ainda desequilibrado do empurrão.

“O que eu estou fazendo? Não se finja de desentendido. Só estou conhecendo a casa do meu futuro marido, do pai dos meus filhos, do meu negro viril, do meu...”

“Escuta aqui, ou você sai agora mesmo, ou eu ligo pra polícia, ouviu bem?”
Ignorando o ultimato de Abelardo, Glória começa a inspecionar a casa:

“Há quanto tempo esta casa não é espanada? Veja só, eu passo meu dedo no corrimão da escada e encontro quilos e mais quilos de poeira...”

Abelardo corre para a saleta, vasculha a primeira gaveta do criado-mudo e retorna com algo nas mãos.

“Você prefere sair por bem ou por mal?”, ele ameaça, com um revólver em punho.

“Isso! É assim que eu gosto, garanhão! Bate em mim, bate! Atira no meu ombro e aprecia meu fluido vital espalhando-se pela tua casa. Eu morro, morro de amor se for preciso.”

Abelardo abaixa a arma e dá alguns passos para trás.

“Eu não te conheço, não sei de onde veio, mas, uma coisa é certa, você está totalmente transtornada! Vou ligar para a polícia e esta situação vai ter de se resolver agora.”

Glória foi escorregando as costas pela parede até cair de vez no chão, e passou a arranhar as unhas em um sofá que estava ao seu lado.

Abelardo ligava para a polícia e Glória conservava um estranho sorriso de prazer. Deleitava-se com a situação, inebriada por aquela obsessão que passou a sentir por Abelardo.

“Muito bem. A polícia vem aí. Espero que te levem pra bem longe daqui.”

Glória calou. Ficou como estava. Virou uma estátua, ao lado dos outros ornamentos, adornando a sala. Com o mesmo sorriso congelado, os olhos estáticos e fulgurantes, ela permaneceu contemplando Abelardo. Saboreando os últimos minutos que lhe restavam. Pelo menos por enquanto, pois ela tinha planos e mais planos para que aquele homem fosse seu. Para sentir aquele corpo negro, rígido, robusto, em meio a suas entranhas. E começou lá mesmo. Começou a pensar, a maquinar, como se seu cérebro fosse mais um computador a desarquivar, ler dados, achar combinações. Como se seu cérebro fosse um computador sobrecarregado, superaquecido, viajando na velocidade máxima que se podia chegar.

A polícia chegou. Ela não se deu conta. Não se deu conta, até o momento de que quando Abelardo explicou toda a história, um oficial tocou no seu ombro direito. Glória voltou ao mundo dos vivos. Apenas virou um pouco o rosto em direção ao do policial. Manteve a mesma expressão. Estava lá, e ficaria por dias a fio.

Assombrado, Abelardo viu aquela mulher doente, saindo acompanhada por dois oficiais. Eles a colocaram na viatura. Pelo vidro, o olhar tenaz, um míssil que persegue seu alvo. O pescoço quase completamente torcido e Glória hipnotizada.

Abelardo trancou a porta. Não conseguia mais dormir. Precisava relaxar hoje à noite. Precisava encontrar a mulher mais feia e carcomida da cidade para uma noite de êxtase.

Depois de passar algum tempo numa clínica psiquiátrica, Glória recebe alta. Saindo de lá, pega um táxi e desce algumas ruas à frente.

“É aqui mesmo, senhor”, ela disse.

Olhou com os olhos bem abertos uma luxuosa loja de artigos femininos. Viu aquelas maquiagens todas, aquelas lindas roupas de grifes famosas, aquelas joias que ofuscavam os olhos. Tudo aquilo pareceu uma grande incógnita quando o assunto era seduzir Abelardo. Acabou não entrando. Andou mais alguns metros. Empurrou a porta de vidro de uma loja de produtos químicos, comprou um frasco de ácido sulfúrico e foi embora com o sorriso de míssil.

Telefonema


Alô? Alô?... Ah, ainda não disquei. Este telefone não para de chiar. Desde que foi instalado ele vive com este barulho estranho. Chiiiiiiiiiiizzzz... É tudo volátil. Tenho a impressão de que alguém do outro lado já me chamou. Não sei se foi uma interferência terráquea ou do além. Não sei. Escutei metade do meu nome no chiiiiiiiiiiizzzz. Desliguei. Desliguei antes que pudesse escutar de novo.

Agora são dez da noite de uma sexta-feira, 16 de agosto de um ano que eu sempre me esqueço ao tentar lembrar. Comi um pizza inteira, sozinho. Tudo bem que não foi uma grande, foi uma média, mas, antes eu ficava satisfeito com uma pequena. Foram seis opulentas fatias para o meu estômago. Acho que fome tem a ver com solidão. Solidão provoca fome. Quando nossa barriga ronca, é mais um grito desesperado por companhia. Seja qual comida for, até estragada, mas é a súplica por um preenchimento. E, quando a gente se sente só, a comida já deglutida parece que não faz efeito. Parece que o saco fica vazio de novo. Não para em pé.

Hoje aproveitei o tempo livre para fazer tudo o que tinha de fazer. E o que não tinha também. Inventei coisas. Pintei uma parede, cortei as unhas de uma mão e roí as da outra – porque não consigo segurar direito a tesoura com a mão esquerda -, lavei os cabelos com shampoo e condicionador, li dois jornais antigos, assisti TV. Eu não aguento mais assistir TV. Liguei para o SAC da operadora de TV por assinatura. Quis consultar alguém, ouvir uma voz e esquecer esse maldito grilo que está enfurnado em algum lugar.

Alô?... Ah, está chamando. Mais uma vez. O telefone pulsa. Ao longe, surge uma voz.
Ai! Ela atendeu. Ela que eu estava esperando, ela! E ela atende sonolenta. Sinto que já ia embora, sinto que já encerrava o turno, sinto que olhava os biombos vazios, os computadores desligados, os copinhos descartáveis de plástico fora da lixeira, sujos de batom.

Ela inicia com formalidades, coisa que não precisava. Devia iniciar com intimidades, isso sim. Era o que eu queria. Intimidades a essa hora da noite. Quando se tem milhares de fios e quilômetros nos separando, se quer intimidade, não formalidade. Ela diz “Serviço de atendimento ao consumidor. Boa noite! Meu nome é Marina, em que posso lhe ser útil?”.

Marina, se você pudesse imaginar. Se você pudesse mesmo prever tudo em que me seria útil. Você nem sabe, Marina. E quando eu tenho seu nome, seu nome aqui comigo – até escrevi num papelzinho pra guardar -, me sinto mais íntimo. Nada de formalidades! Esqueça a empresa. Esqueça o roteiro que eles te entregam junto com o pão e o café. Vocês não são robôs, nós não somos zumbis. Nós, clientes, somos seres humanos. Também nos apaixonamos por funcionários de call centers. Principalmente se seu nome for Marina, sua voz for doce, crescida e com sono também.

Eu deixo tudo mudo, tudo vagando pelo ar, pelos cabos de fibra óptica, ponho tudo em risco, enquanto fico calado por alguns instantes, pensando essas loucuras todas, enquanto Marina precisa ir embora, fechar o zíper da bolsa, pegar o próximo ônibus.

“Alô? Senhor? Senhor?...”, Marina insiste. Comprometida. Ela só não quer perder o cliente na linha. Não quer que ele vá dormir com a única programação da TV sendo os chuviscos. Para os demais, isso seria o suficiente, seria surpreendente até. Mas Marina não se importa se o solitário homem que ela vai perder é o futuro pai de seus filhos, o cara que vai resgatá-la de todo e qualquer call center da vida, dos ônibus apinhados de gente. Marina, comigo você só usará uniforme para realizar fantasias sexuais.

Marina, eu não aguento mais assistir TV. Entendo seu trabalho, então, antes que você me interrompa oferecendo um pacote com mil e um canais, canais sobre viagens, reality shows, filmes, seriados, programas de auditório, eu não quero! Não quero, está bem?! Não quero canais com o melhor do esporte. É a coisa que eu menos pratico na vida. Não quero canais sobre futebol, eu não gosto de futebol. Não sou como esses caras por aí que gostam de futebol. Também não estou a fim do pacote de canais adultos. Não quero mais desperdiçar meu tesão com atrizes tailandesas traficadas para o porão de alguma casa dos estados unidos.

Marina foi tocada, pela minha bênção, pela minha conversão. Bastou um segundo, um segundo de hesitação, e lá estava ela, com o telefone em uma mão, com a outra entre os cabelos. Com aquelas unhas vermelhas, lá estava ela. E se eu pudesse lá estar também, se isso fosse possível, enxergando tudo de cima, eu veria uma milimétrica gota de suor correndo rapidamente entre seus seios, fixando-se entre os dois, criando uma ponte. Eu não pedi volumosos seios. Marina, para mim, poderia ser só Marina, somente isso e sua voz, como um fantasma. Porém, já que os fartos seios lá estavam, batizados por minhas palavras e seu suor bento, eu não reclamaria. Nunca.

Marina gaguejou. Depois de hesitar com o silêncio, depois de repensar minha voz, ela gaguejou. Acho que pensava sobre o quão horrível eu era, fazendo-a perder sua noite, ficar aterrorizada com um homem obsessivo, que acredita em amor à primeira ligação.

“O senhor pretende cancelar sua assinatura então?”, ela disse, com a voz mais doce do mundo, com a voz mais delicada, amável, afável, fofinha. Ela disse, com a voz menos compreensiva do mundo. Eu não, eu não pretendo cancelar, eu não pretendo cancelar nada, a não ser eu mesmo. Quero que as contas continuem chegando, entulhando o vão da porta, me lembrando o que eu comprei, com o que eu gastei, como me endividei, como me dei de presente, como fui recolhido para o estoque dos defeitos.

Olha, Marina! Eu não pretendo cancelar coisa nenhuma, tudo bem? Sério, eu não liguei pra cancelar nada. Por mim as coisas continuam sem cancelamento. Sabe o que eu quero cancelar? - me contradizendo - Imagina? - Dessa vez, não falei sobre cancelar eu mesmo. Dessa vez, Marina escutava. Tinha de impressionar de maneira positiva. - Quero cancelar nossa distância, Marina. Quero você aqui, comigo. Quero assistir filmes, seriados, reality shows, programas de auditório, todos com você ao meu lado. Você entende o meu lado? Entende que eu seja capaz de desejar isso?

Marina pareceu querer entender. Riu e chorou rapidamente. Eu ouvi nitidamente. Marina se esforçou para me entender, mas era em vão. Aquela maneira, aquele modo que segui, o jeito que pude tocá-la, era impraticável. Eu poderia ser qualquer um. Poderia ser horrível, por dentro e por fora. Marina nunca teria uma resposta.

Ela desligou o telefone educadamente, formalmente, sem quebrar meu coração, mas também sem ajudar a remendá-lo. Mas eu não culpo Marina. Ela fez o que pôde. Senti isso, mesmo sem que ela tenha me comunicado.

Acordei com o corpo doendo, com fome, com mais uma conta passando por debaixo da porta, com uma torneira ligada – provavelmente do vizinho. Acordei com a TV sintonizada em um desses canais de notícia. Tirei a remela dos olhos para ver Marina chorando enquanto se agarrava desesperadamente ao microfone da repórter. A reconheci pela voz. Foi aí que eu soube que era a minha Marina. Ela falava trêmula sobre o terrível crime acontecido naquela noite: seu namorado fora assassinado por um homem armado com um revólver. Ele teria reagido à tentativa de assalto e levou dois tiros na face. Uma mulher que estava ao seu lado no ponto de ônibus também foi baleada e está no hospital. Marina chegou logo depois.

Marina chorava copiosamente, e era tão triste aquele choro. As lágrimas que varavam o rosto eram tão diferentes da gota de suor entre os seios. Mas Marina não era diferente do que eu imaginava que fosse, mesmo com a maquiagem borrada. Eu salvei meu grande amor.