sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

2011

Lá vem o ano novo que logo, logo, sofrerá de novo de reumatismo.

PEDAÇOS

Quebrei meu nariz
goteja sangue
escorre pelos lábios
invade a boca
as papilas gustativas
Quebrei os braços
as pernas
arranquei o coração
e embalei com papel-filme
Quis mesmo desconstruir-me
criar outro feito Frankenstein
outro que não sentisse a eterna
ausência de alguma outra coisa.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

GUARDA

Passatempo
passa o tempo
passa o dia
o minuto
o instante diminuto
a cada mexida do ponteiro
quero guardar inteiro
esse cheiro
esse dia
essa memória
essa história
quero que ainda queime
essa chama
chamada vida

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

UMA COISA, OUTRA COISA

A gente dorme pra não sentir fome,
mas sente fome e não dorme.
A gente fica acordado a madrugada
inteira, só tentando viver o que não
se viveu na segunda-feira.
Olhos secos, parcas piscadas.
A gente tenta criar, mas não cria nada.
A gente tenta sucesso na calada da noite,
liga o aspirador, pode ser inspirador, mas os
que restam online são confessos em
esconder a dor.
A gente pensa que agora tudo é global,
agregado, conectado. Estamos mesmo
é mais sozinhos do que nunca.
Sonhos perturbadores revelam-me ao
pé do ouvido que a vida é pisar em
armadilhas.
Elas agarram as raízes, os pés, tornando
tudo mais pesado, lento e dolorido.
A cada passo, vai-se um pedaço, e
esperança é esperar que sobre um
pouco de você mesmo pra contar
história.

sábado, 11 de dezembro de 2010

PARADA

Era ela tão bela que quase parecia eterna. Hoje, o ônibus podia nem passar porque a parada era bem-vinda. Passou, molhou todo mundo, menos ela, bela. A eternidade é relativa. Para quem embarcou, existe.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Clarividente

Enxergava seu futuro não numa borra de café nem em bola de cristal, mas no fundo turvo da água de uma privada.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

PÉSSIMO I

Embarquei nesta viagem
truculenta, viagem de tormenta.
Muitos e muitos passageiros, eles
sem destino, sem roteiros.
Mais cobradores do que saldo
no bolso. Mais roedores do que
carne no osso.
O motorista não despista,
sai da pista.
Jesus balança e vale como qualquer
outro souvenir no retrovisor.
Alguns passageiros apresentam dor,
é o terminal. Outros apenas chegaram
mas já veem o mal.
Assentos desconfortáveis, suor
e outros fluidos corpóreos.
Todos na mesma viagem autofecundando
o seu jardim vida.
Uma hora, e não demora, o pneu estoura.
Uma hora o metal colide e nessa lide
ninguém tem cinto de segurança.
O carro virou. A gente virou extrato
de tomate. A viagem agora é de outros.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

CRESCER

Quando penso em crescer, diminuo.
Diminuo uma série de extravagâncias.
Mas como pensar em crescer com meu
coração tão apertado que somente um
amor platônico viaja sentado?
Como crescer e me desfazer das
HQs, dos brinquedos mutilados, dos
púberes seriados?
Prefiro continuar nem grande nem
pequeno, apenas todo de antes, agora
e sempre.
A quem interessar, sou menor,
minimizando cada espaço a ponto de
colar um abraço.
Sou menor porque o universo é tão
mais e eu aqui me preocupando
em achar palavras.
Eu, de pequeno coração, dou um nó
em mim mesmo. Só desata quem
diminui comigo sem que seja a esmo.

sábado, 20 de novembro de 2010

HORÓSCOPO

Quando ele casou-se, achava que ela era virgem, tanto pela pouco idade como pelo cheirinho de coisa intocada. Quanta ingenuidade! Nem mesmo nos dias de mais sorte da sua vida o horóscopo dispararia “hoje é o momento certo de penetrar uma virgem, prepare suas ferramentas e não abaixe a cabeça”, a não ser que, ao cruzar a esquina, desse de cara com Angela Bismarchi e seu hímen de plástico, mas aí seria um tremendo azar.

Aos trinta e três anos de idade os vincos já lhe marcavam a face e as preocupações sobre uma futura calvície ou um futuro câncer de próstata já eram torturantes. Todo dia era a mesma coisa. Nem os móveis mudavam de lugar, o que mudava era seu amor por ela, antes uma avenida, hoje uma viela.

O sonho dele era ter filhos, mais precisamente um lindo casal de gêmeos. O sonho dela era ter filhos, mais precisamente fazê-los com um lindo e musculoso casal de gêmeos ao mesmo tempo.
No princípio, ele era um leão na cama, selvagem, líder, forte, destemido, rei e bom nos rugidos. Ela não parecia fingir, era a leoa, domada, submissa, safada e dava unhada.

Foi num dia desses que o rei da floresta perdeu seu trono para um gorila. Era isso que o outro parecia, um gorila. Vendo aquela cena dela com o outro, acoplados no meio da sala, derrubando seus troféus, seus porta-retratos e documentos no chão, ele soube que a leoa era um escorpião dos mais letais. Pior visão do que aquela só ela sendo autora de best-seller também.

Com a terrível sensação de um par de chifres e da carteirinha do clube dos touros no bolso da calça, ele partiu enfurecido como uma leão que caça sua zebra, mas deu zebra e, antes que martelasse os dois, o gorila tomou o martelo da sua mão para cravá-lo em sua cabeça. Ela sentiu nojo do sangue dele espirrado em sua gengiva, mas felicitou o brutamontes ricardão pelo feito.

Partiu o corpo do marido simetricamente, como uma dona de casa prendada. Enrolou os pedaços cuidadosamente no jornal do dia e depois empacotou tudo com sacos plásticos pretos. Jogou no aquário, porque a ração dos peixes havia acabado.

Envolvendo a face do falecido, a seção de astrologia. Para seu signo, Libra, o seguinte texto: “Mantenha-se calmo e não perca a cabeça. Discussões banais podem originar enormes desavenças. O momento é de amar e buscar sua alma gêmea, que pode estar do seu lado. Viva a vida e se desligue dos possíveis problemas que possam surgir. Bom momento para tirar férias”.

sábado, 13 de novembro de 2010

2007, RADIOHEAD E ÓCIO


Em 2007, numa onda de ócio e tédio que perdura até hoje (mais o tédio), fiz uma animação simples, usando meios precários, como um programa não muito completo de edição de vídeo e imagens obtidas do meu scanner para uma animação quadro a quadro. Apesar do resultado passar longe de algo profissional, acreditem, deu trabalho. A inspiração foi a própria música de fundo, "15 Steps", do Radiohead. Confiram:


sexta-feira, 29 de outubro de 2010

CARTA

A princípio, o amor gravita
sem destinatário.
Porém, ao passar do horário,
o amor fica solitário.
Odeio deixá-lo por aí, cabisbaixo,
sem saber aonde ir, mas o amor,
vez ou outra, tem mesmo de partir.
E vez ou outra, quando parte de
qualquer jeito, o amor extravia,
chega com defeito.
Amor não tem rastreamento, é
postado no escuro e tem de vencer
os cães pelo muro.
O que eu posto, vai mesmo
sem selo, porque, para sê-lo,
não pode identificar-se nem
limitar-se.
Meu amor, que pode ser
caneta falhada e folha amassada,
só chega quando não mais
tem paradeiro, e encontra,
desprevenido, seu coração
por primeiro.

AUTORRETRATO


Photobucket

Tanto concreto faz com
que nada seja concreto.
Debaixo do caos que entulha
e que cobre, como se descobre?
Mão tremida sobre o papel,
tentando um autorretrato.
Não se parece. Não
desenho meu boato.
Impossível é se
fazer como se é.
Quem sou?
A soma de todos os meus
tempos ou subtração do
passado com resultado
presente?

sábado, 9 de outubro de 2010

POESIA

Poesia só se acha quando
a gente se perde.
E a vida inerte, tudo contra,
é aí que a poesia se encontra.
Poesia é o grito constante
que eu contenho. Cada
poema é um pouco que se grita,
e o alívio no cenho.

LISTA

Comprei um cachorro. Mentira.
É que minha cabeça vira lata
pra reciclar o tempo.
Hoje saio com a namorada. Mentira.
É que quando lhe falta uma parte,
programa a dois é matemática exata.
Encontrei meu caminho. Mentira.
É que quando eu rio, apenas não quero
dizer que o trecho é obra constante.
O fim é mentira, e nem raio x
diz o que me faz feliz.
E não me venha com Pão de Açúcar,
porque a vida não é doce.

FILME

Fico lendo os créditos,
esperando the end até
que algo comece.
Transformo os protagonistas
em cenário e trago os
figurantes pro primeiro plano.
Quando todos nós somos um
poço de diversidade, alguns
de nós temos de conviver
para sempre com a superfície.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

TÉDIO

Remédio para o tédio, quem tem?
Remédio para o tédio, só um trem,
partindo-me ao meio, uma vida sem
freio.
Remédio para o tédio, você dizendo
que é recreio.
Os dias andam feios, os problemas
cobrem tudo. Descobri que o tédio
é tão tédio, porque ele anda
sempre mudo.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

SAL

Se eu chorar por dentro,
de gota em gota, quanto eu aumento?
Se eu chorar por fora, para que
isso percebam, quanto demora?
E cada lágrima, o que conta de nós?
Se escorre pelo rosto, que estamos sós?
Se a mim mesmo eu pertenço, porque
das tuas mãos quero um lenço?

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

EAÍ


E aí você está sentado, sozinho na mesa, esperando sua pizza ficar pronta. Já devia ter chegado. E aí o garçom liga o televisor para fazer o tempo não parecer tão lerdo. Ele sintoniza no Faustão. É o sinal do domingo. É domingo. É apocalipse. Começo e fim dos tempos. Começo da semana e fim da vida. Um suicídio agraciado com segundas, terças e infinitas outras chances.

E aí você imagina o Faustão babando borbulhosa espuma branca seguida de gritos desesperados da plateia. E aí é só o se vira nos trinta. E aí você percebe que, talvez, não consiga se virar, mesmo quando tiver 30. E aí tem um casalzinho do lado que, nem ao menos se dá conta dos 30 minutos de atraso da pizza. E aí que eles riem e ambos usam aparelhos dentários e têm espinhas. E aí ele é intumescido de tanto lanchar anabolizantes, do tipo que parece um baiacu lutando pela sobrevivência. E aí que ela tem um decote, uma calça Gang e uma pequena bolsa capaz de remeter qualquer um à genitália feminina. O carro dele é o pau, enorme, reluzente, robusto, quatro por quatro, que aguenta qualquer tranco. A bolsa dela é a boceta, feminina, delicada, lacrada, portátil, cheirosa, virgem. O pau dele é atrofiado e não aguenta o tranco. A boceta dela é quatro por quatro, enorme e, lá cabe um carro.

E aí você olha para o lado. Amigos felizes, descontraídos e inquietos falam sobre cachaça, raparigas e veados, porque é engraçado. Eles mexem os braços habilmente, como um mágico treinado para lhe desviar a atenção, mas seu olhar é sagaz e você consegue enxergar o que há por trás. E aí seus olhos vidram na espuminha branca que se forma na boca do mais tagarela, sustentado por rapariga-cachaça-veado, um neologismo que não precisa ser explicado. E aí aquela espuminha é tão branca e tão viva e tão borbulhante que, por um instante, você se lembra do Faustão espumando.

E aí que a juventude é promissora. E você, tão bom, tão crítico, observador e sensato ficou para trás. É só um pensamento que ocorre, quando a hipnose por espuma branca é interrompida pelos passos encantadores de uma moça com a capacidade telepática de fazer algo dentro das suas calças erguer-se e, de esponja, transformar-se em adamantium.

E aí não é para o teu bico, porque ela já tem um. E aí você tem a certeza de querer ser um avestruz e enfiar a cabeça no buraco quando ela cumprimenta primeiro o carro e a bolsa e, logo depois, o Aurélio rapariga-cachaça-veado. E aí, meu deus, alguém ali quer ser advogado, porque o pau aumenta mais do que com alargadores vendidos na internet. E aí, depois de “nóis faz” e “nóis fumo”, interessei-me pelos serviços. Quero defender-me deles mesmos.

E aí é bom morar em cidade pequena, porque todo mundo se conhece; porque todo conhecimento do mundo se desconhece; porque é pacato; porque um carrapato sorvendo forte um cão é a nova espuma branca da nação.

E aí, passou a fome. Você vai embora sem dar satisfações, porque, provavelmente, a pizza já estava sendo embalada. Mas, alguém de boca espumante, devorará aquelas dez fatias de calabresa e frango com Catupiry.

E aí você caminha e observa todos tão risonhos e acomodados em seus bancos de madeira que nem parece que amanhã será segunda-feira. Mas a segunda chega, e as conversas desgastadas por bocas espumantes e salivares também. As pessoas estão todas empolgadas, atarefadas e engajadas em viver uma vida que, de longe, já lhe deprime.

E aí, eis que surge um banco acomodador bem na sua frente. Sentar é a única tentativa de assentar suas ideias viajantes de um cosmo cinzento. Muito bem, sentando, indago-me, do domingo, só Faustão? Da pizza, só gordura? Da boca, só espuma? E aí?

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Brejeira


Você tem cheiro de perfume vencido.
Você tem cheiro de maquiagem vencida.
E você usa umas roupas meio de velha,
mas há pouco iniciou a descoberta da
vida, ainda cheia de viço, inalando o
ar da mocidade.
Vivemos juntos toda essa despreocupação.
Não pensamos em nada, a não ser café,
cobertor, luar, estampas floridas, papéis.
Nossa mesma idade, nosso suor a evaporar,
nossos buços de paladar quase frutífero.
Morangos de uma beleza chamada juventude.
Somos pássaros enquanto nossos pais
estão na sala, e podemos brincar de médico
ou de jogo da velha.
Nos casaremos, teremos três filhos e você
continuará sendo uma caipira intelectual,
porque eu sou o escritor.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

AQUELA GAROTA


Aquela garota obstinada, que não
lê Capricho, pois prefere Hqs.
Aquela garota que nunca subiu no
salto alto porque pode correr muito
bem de tênis.
Aquela garota do esmalte descascado,
porque ninguém é perfeito.
Aquela garota que valoriza um
bom gramado, porque os
outros só parecem ruminantes.
Aquela garota que não se deixa levar,
que não se deixa vender, porque
é caixa registradora.
Registra cada momento de todos
à sua volta com seus binóculos
invisíveis.
Aquela garota que vê mais do que
fala, porque sabe que eles são
incorrigíveis.
Aquela garota que gosta de tesoura,
cartolina, caneta e suor, porque
reconhece o que é maior.
Aquela discrição, aquela leveza,
aquela personalidade, aquela
singularidade, aquela paralisia.
Ela, só aquém de quem idealiza.

sábado, 21 de agosto de 2010

Profundidade


As pessoas me desorganizam
mais do que eu posso me organizar.
E, apesar de sermos bípedes, não
caminhamos juntos.
Cada vez menos eu vejo semelhança
entre meus semelhantes.
Não enxergo asas e nem quem
queira voar.
Não enxergo ideias, pensamentos
e reflexões aeroplanas.
Ninguém mais pé no chão.
Todos na lama.
Ninguém mais cabeça nas nuvens.
Todos despencando delas.
Quando meus olhos insistem,
só querem de volta alguém
para sonhar junto. Alguém que
veja uma coerente semelhança
não resumida à superfície.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

A VIDA PARA UMA BARATA É CARA


Às vezes a gente assiste nos programas de TV quadros que mostram exemplos de superação. Ora é o paratleta sem pernas e braços que, mesmo assim, disputa o salto com vara, ora é a garota de 15 anos sobrevivente de uma leucemia, um atropelamento de caminhão e um tiro de fuzil AR-15. O que ninguém vê são baratas ilustrando quadros desse tipo. Porém, são elas o exemplo perfeito do que é espírito de sobrevivência. Afinal, você nunca verá um ser humano rastejando por aí com seu intestino do lado de fora nem vivendo por uma semana após ser decapitado – e quando acontece isso com a dona barata, ela morre de sede, mas é porque ainda não descobriu o canudinho.

Elas não mudaram muito sua aparência em milhões de anos. Enquanto os dinossauros tomavam porrada de asteroides na cabeça, as baratas desfrutavam de sombra e água fresca, vendo tudo acontecer como num grande espetáculo pirotécnico.

Esses insetos, alvos do mais profundo asco dos seres humanos - principalmente por parte das mulheres - são extremamente ousados e fazem uso até de psicologia inversa para confundir seus algozes. Todo ser, ao sentir-se acuado, corre, corre o mais rápido e para mais longe que puder do perigo. As baratas, filhas da puta que são, investem contra você, vão direto na sua direção, acuam seus pés, enquanto se segura o chinelo com a mão.

Baratas já foram estrelas de filmes de terror, de comédia e ganham cada vez mais espaço no coração e nas vulvas das raquíticas atrizes pornôs nipônicas. Elas estão por todos os lugares, por todos os espaços, frestas, buraquinhos e vãos. Elas são capazes de digerir celulose, de abocanhar seus livros e suas memórias. Não importa o quão sujo, o quão limpo, o quão pobre, o quão rico você seja, sempre haverá uma barata na espreita.

Talvez a insistência das baratas em se proliferar e continuar vivas – o que nos tira do sério -, seja a lição que faltava para aquelas pessoas não mais capazes de se consternar com exemplos humanos. Tenha a barata como referencial. Cada obstáculo percorrido é um tubo de Baygon vencido.

Photobucket

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Nada


O ex-integrante de boy band
que dançou,
a atual garota da capa
sem miolo,
o ex-big brother
sem hermanos,
a atriz pornô metidinha,
o vídeologger desconectado,
o apresentador sensacionalista
fora da lista,
o animador de plateia sem
os braços,
o sósia negro do Michael Jackson,
o escritor das estantes vazias,
a roda-gigante para gente
quadrada,
um domingo na pizzaria,
todos eles numa escura
sala neon esfaqueando-se
com uma faca de pão.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Tele Senas e Abacaxis


“Quer comprar abacaxi? Traz Tele Sena!!! Traz Tele sena!!! Este aqui é docinho, docinho, docinho! É abacaxi da Paraíba”. É assim, em meio ao já caos de uma cidade pequena, que uma voz se destaca na multidão. Uma luta covarde entre o burburinho dos transeuntes e o alto-falante do dono do caminhão. Caminhão que eu tenho apenas na imaginação, e é vermelho com uma lona cobrindo os abacaxis. Bem que eu queria sair, dar uma espiada, mas reservo-me ao direito de ficar em casa.

Aí vem em mim uma dose de encanto junto de uma melancolia, de um reconhecimento da decadência que passa despercebida. Eu me pergunto “onde estou?” e “que lugar é este?”, aí dou por mim e percebo o quanto é difícil sair.

É uma desconstrução dos significados; é sexo sem amor; é estupro; é o aterramento de uma vala para encobrir a profundidade. O abacaxi, vindo de longe, passa, passa por toda a cidade, como um turista, como um terrorista escondido sob a lona, a ponto de explodir. Passaria despercebido não fosse o alto-falante que denuncia, que clama, que chama. Aí as formigas aparecem ansiosas por açúcar. As pessoas e seus baldes. Zumbis de um sol nordestino que putrefaz com mais facilidade toda e qualquer carne.

Do fundo de uma gaveta qualquer saem as Tele Senas esquecidas. Mais esquecido ainda o sonho de tornar-se milionário, de conhecer o homem do baú. Com a desconstrução de significados, o título de capitalização passa a ter valor pecuniário e o abacaxi, outrora apenas metafórico, passa a ser literal.

Desta maneira a transação é realizada. Pessoas felizes com seus baldes transbordando abacaxis; vendedor exibindo seu dente de ouro, contente pelo dia não ter ido por água abaixo.
Vem a faca carrasca desapossando o rei abacaxi e renegando seu item mais nobre, a coroa. É por isso que todos permanecem súditos, dependentes de suas amareladas Tele Senas. Falta-lhes atenção aos detalhes.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Óculos e Bigode


Quero usar pochete,
ter cabelo no peito e saber
que você me ama desse jeito.
Quero ter dente faltando
e sobrancelha colada e saber
que pra você isso não é nada.
Quero ter nariz grande e voz
anasalada e te ver ainda apaixonada.
Quero usar óculos fundo de garrafa
e passear contigo de mãos dadas.
Quero não ter amigos, ser fichado
como louco e saber que isso
não influencia nem um pouco.
Quero ter alface no dente e
estar certo de que você continuará
a sentir o que agora sente.
Quero andar com o desodorante
vencido e saber que
entre nós dois isso não é perigo.
Quero ter um bigode como o
do Belchior e ver que nosso
amor é sempre maior.
Quero que você não se
assuste, pois isso não é um
embuste, apenas um disfarce.
Assim, de todas as maneiras
você prova que gosta de mim.

domingo, 18 de julho de 2010

Até Logo


Ah! se nosso passatempo
fosse comer biscoito Passatempo
e só olhar as nuvens.
Ah! se todo o tempo do mundo
fosse meu para contar quantas
listras existem nesse vestido teu.
Ah! se teu cheiro grudasse feito
fita adesiva no meu nariz e
respirar fosse mais lembrar.
Queria escrever como se
cada palavra, expressão e
olhar teu fosse uma música
que caminha para o ápice,
mas, exceto o som das teclas,
é tudo silêncio porque eu
acho que tudo que se aproxima
de mim é silêncio. Um silêncio
tão hermético que me prende
nesta outra dimensão.
E aí nunca ninguém irá me
compreender, porque eu
sou intocável.
Sendo assim, tuas mãos
em mim, a boca, a pele
e o perfume, são só um
silêncio que se faz presente
quando coloco aquelas
músicas pra tocar.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Tesoura


Photobucket

Alguém, que eu não sei o nome, partiu-me ao meio, sem nenhum receio de que eu fosse me dividir em dois. Ainda bem que não, pois minhas partes são feijão com arroz, são casadas. Agora eu não falo nada, fiquei nessa de deixar o vento me levar pra lá e pra cá, como o velho jornal que só me agradava o cheiro. Estou meio perdido numa ventania sem fim. Enquanto as pessoas leem seus jornais, ninguém lê a mim.

Postado originalmente em outro blog meu já falecido. O desenho também é meu.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Ainda Falta


Tudo o que eu tenho são
esfirras de frango
que me fazem passar mal.
Tudo o que eu tenho são
amigos que me visitam nas férias.
Tudo o que eu tenho são
amores criados para
sustentarem meus poemas.
Tudo o que eu tenho são
as observações irônicas
capazes de levar ao riso
e encobrir um coração amargurado.
Tudo o que eu tenho
são sonhos débeis mutilados
sempre que abro a porta do quarto.
Tudo o que eu tenho é
uma organização transformada em
caos quando preciso lidar com os outros.
Tudo o que eu tenho é
a incessante busca por um
coração que me distancie das
coisas que eu não desejo ter.
Tudo o que eu quero ter é
alguém que não me ache idiota,
mas apenas sincero.
Tudo o que eu quero é
humor, melancolia, estilo
e sua vontade de erguer meus
braços feito arranha-céus.
Tudo o que eu quero é
manter as esperanças de
que o que eu posso querer também
esteja em você.
Tudo o que eu posso querer é
ensinar e aprender que bons
sentimentos bebem do elixir
da longa vida e apagam
qualquer ferida.
Tudo o que eu quero é
ir embora dos lugares
que assassinam meus desejos.
Tudo o que eu quero é
alguém que queira.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

0


E se o gelo da minha mão
conhecesse o gelo da tua,
seríamos capazes de congelar
essa rua?
Sobreviveríamos às baixas
temperaturas da lua?
Nosso mal é uma constante
febre glacial que não nos
permite ser como o vizinho.
O sol se põe e eu congelo sozinho.
Estalactites e estalagmites
nascendo dentro de nós,
perfurando todo o amor restante.
É sempre gelo de principiante.
Pensei em esfriar a cabeça e
e passei as férias dentro da geladeira.
Acabou a energia, eu não fiz o que queria.
Perdi a noção de noite e de dia.
Li no jornal os dados alarmantes
sobre o dado ser um cubo de gelo.
Joguei-o, tirei a sorte:
você mudou-se para o Polo Norte.

sábado, 3 de julho de 2010

Unidade Imaginária


Queria te falar em francês,
mas sempre parece grego.
Acho que descobri que
sonhos fragmentados nada
mais são do que pequenas
unidades de desilusão.
Talvez se a gente se
fotografasse todos os dias,
talvez, perceberíamos com
o tempo um sorriso que murcha,
que não vence mais a gravidade.
Os mapas dos lugares que eu
pretendia visitar estão ficando
desatualizados. Vai tudo ficando
de lado. Fora da rota.
Sinto-me mal por não gostar
dessas pessoas, mas elas são
tão lugar. Elas todas são
cidade sem turismo.
Perco-me pensando em furos
no tempo e no espaço, em
realidades paralelas. Fico
pensando em sair para contar
as estrelas, deitado sobre um
refrescante gramado.
Penso e escrevo, como agora.
É um fio de esperança, de insistência
burra e cega, de tolice em achar
que o meu individualismo vale
alguma coisa.
Será que você aí sabe da leveza
e fragilidade desses pensamentos?
É capaz de perceber o trânsito que eles
atravessam antes de nascerem
para o caos?
Com um cumprimento, com uma
campainha, com um outro alguém,
eles se dispersam, se desorganizam
e transformam-se em simples e
pequenas unidades. Desilusões.

sábado, 19 de junho de 2010

Procura-se


É estranho como eu ando
sempre procurando.
Recebendo folhetos,
lendo jornais.

É estranho como eu caminho
mais a procurar do que
qualquer outra coisa.

Nos diálogos alheios,
nos veículos sem freio.
Por entre lentes embaçadas,
eu procuro.

Tão apaticamente eu procuro.
Tão imperceptivelmente.
Mesmo assim eu continuo,
eu procuro.

Isto faz com que eu me sinta
mais vivo. Isto faz com que doa.

Eu procuro no Google, nos
erros de concordância e nos
batons mais feios.
Eu procuro na falta de freio.

Procuro porque acho que
uma peça não se encaixa.
Procuro porque acho que
nem todos bebem cachaça.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Elazero


Queria te contar tantas coisas.
Coisas que só eu sei.
Coisas que só você saberia.
Queria contar-te o meu dia.

Se você existisse,
se você não fosse só
alguns parágrafos, eu
te contaria.

Te fiz pra mim.
Meia, calça,
tattoo, rock.
Assim ou nada disso.

Vem só como compreensão.
Vem como poço de inspiração
que não deixa findar
minha inquietação.

Te concebo, mas não te vejo.
Às vezes é assim. Ausência
como uma borracha gigante.

Te peço. Encontra-me
na areia movediça, na cartola
dos mágicos, no futuro incerto.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Para acabar com o seu mal, água em pó mineral


Você acha que a vida só piora? Água em Pó não evapora e chegou em boa hora! Se sua vida parece estar no final, não precisa levar na Universal camiseta com nó, pra isso existe Água em Pó! Ela resolve tantos problemas, ela dilui os seus dilemas. Ela cai em pé, corre deitada e é pó pra qualquer parada.

Tá a fim de uma branquinha? De uma carreirinha? Pois este é o pó ideal, o único que não é letal. Já se acha Água em Pó em qualquer esquina, e eu garanto, é melhor do que muita vacina.

Quer ter o oceano atlântico inteiro dentro do seu quarto? Dentro da sua sala? Com Água em Pó isso é possível. Nas mais variadas e práticas embalagens agora você pode carregar sua água para onde quiser sem molhar nada. Água em Pó não é cilada nem feitiçaria, é refrescância todo dia.
Rende mais do que as outras e glúten ela não contém. Beba água em pó e fique zen, zen.

Utilidade comprovada:

Engane seu patrão, sua namorada e até aquele chato que se acha seu camarada. Água em pó versão lágrimas tem uma incrível fórmula que, em contato com a pele humana, assume o formato líquido. Você vai chorar copiosamente e sorrir por dentro. Lágrimas rolando funcionam mais do que qualquer argumento.

E tem mais! Água em Pó versão lágrimas é usada por nove a cada dez atores que fazem drama.

Água em Pó e religião:

Quer mais comodidade do que receber a sua água benta em casa? Agora você já pode. Em parceria com a igreja católica a Água em Pó entrega em seu domicílio a água benta em pó, ideal para dar um belo banho nas cinzas daquele seu parente cremado.

Água em Pó apoia as causas humanitárias:

Sabe o que é mais tenebroso no mundo em que vivemos? A quantidade de desperdício diária enquanto milhões vivem na miséria. Água em pó veio para acabar com isso, assim, nem uma gota sequer vai para o ralo.

Distribuindo pacotes tamanho família em todas as partes do mundo para as pessoas que sofrem com a falta de água potável, A.P tornou-se o produto favorito dos voluntários que se sensibilizam de perto com esse problema que é de todos nós.

Mas Água em Pó não tem limites e, desde o miojo, é o maior invento com o qual a humanidade pôde sonhar. Elabore sua própria funcionalidade para A.P e viva num mundo menos seco.

sábado, 12 de junho de 2010

Detona-dor


Se a vida esta por um fio,
qual deles cortar?
Ainda queima o pavio,
sem plano A, sem plano B.

Penso que possa explodir
a qualquer momento; desfigurar
todo e qualquer sentimento.

Verde ou vermelho?
Hollywood mente.
O ócio desarma.
Ninguém sente.

Eles são bombas, TNT.
Eu sou navio que atraca, sem ação.
Eu só espero...
Detonação.


quarta-feira, 2 de junho de 2010

Cumulus Nimbus


Gosto quando chove
porque todo mundo corre.
Todo mundo vai pra casa e
o mundo fica como eu.
Gosto quando chove porque
pra um o guarda-chuva é
mistério e classe; pra dois
é romântico.
Gosto quando chove porque
a rua acorda de ressaca e
as poças me desviam.
Gosto quando chove porque
as pessoas preferem se encostar.
Gosto quando chove porque
alguém se protege como pode,
sob seu teto, da guerra de gotas.
Gosto quando chove porque
dá a impressão de que o céu chora
a aridez da vida.

sábado, 29 de maio de 2010

Drinque


Queria tomar a vida, mas ela
é tempestade em copo d'água.
O pior é que de gota em gota,
só o que pinga é mágoa.
Em tempos de contenção, os
eletrônicos funcionam, mas eu não.
Ajusto o timer, escuto um vinil e
as gotas enchem um barril.
Queria tomar a vida, se as poças
não evaporassem. Nada fica.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

A...


Te vejo nos filmes.
Te vejo nos livros.
Te vejo nas músicas.
Mas nunca te encontro.
Mas nunca te abraço.
Mas nunca te conheço.
Dizem que você é incrível.
Dizem que é tudo o que procuramos.
Dizem que nos cega.
Eu te crio.
Eu te projeto.
Eu te idealizo.
Mas você desmorona.
Mas você sucumbe.
Mas você amassa.
Dizem que vem do coração.
Dizem que vem da alma.
Dizem que é químico.
Mas eu não consigo encontrar o meu.
Eu não consigo encontrar o meu e dizer
“foda-se!” para todos os outros que dizem.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Contracapa


No mundo, a maior é minha depressão.
Em alguma coisa eu tinha de ser campeão.
Minha depressão é a maior do mundo.
Minha depressão não cessa um segundo.
Minha depressão é algo tão profundo.
Quem sabe numa escavação eu não encontre
o fim da minha depressão.
Nem a de 29 foi maior.
Roubaram minha bolsa de valores.
Agora me explica, se eu morrer de vontade,
uma vontade seria morrer?

Antes de jogar um caderno antigo fora, resolvi transcrever estes retalhos de poemas que agora são um só.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Telefone


As pessoas estão a cobrar,
mas eu sou um telefone sem fio.
Ando bloqueado. Se quiser falar comigo
vai ter de esperar sentado.
Não quero atender, não quero chamar.
Só ficar no vazio, sempre fora de área.
Não me chega mais sinal.
Será que emudecer é o meu mal?
Anunciei no visor: tenho direito
a ficar fora do gancho.
Não deduro anônimos. Comigo isso
não com-bina.
Se acha que não mais te sirvo, me
joga na piscina.
Minha frequência se mantém baixa.
Por mim, podem colocar-me de volta
na caixa.
Trim-trim agora virou ausência.
Só os trotes me dão a sapiência que procuro
para saber que falar com os outros é o
mesmo que ler no escuro.

domingo, 4 de abril de 2010

Hi, I


Eu sou Seth.
Eu sou Andy.
Eu sou Bobby.
Eu sou Doug.
Eu sou Lucas.
Eu sou Forrest.
Eu sou Joel.
Eu sou Jesse.
Eu sou Darko.
Eu sou Bruce.
Eu sou Lionel.
Eu sou Stéphane.
Eu sou Antônio.
Eu sou Jonathan.
Eu sou Cameron.
Eu sou quem sou... ber o que é.

quarta-feira, 31 de março de 2010

Ou Seu Dinheiro de Volta


Sorria, é o que dizem. Levite,
se puder. Esqueça toda sua carga negativa.
Palavras bonitas. Verde. Esperança. Céu.
Rezar. Todos rezando, orando, fazendo
a sua parte, cavando seu buraquinho.
Todos comendo queijo, por dentro
do grande segredo. Todos somos
um. De mãos dadas. Somos um.
Como ser feliz? Emagreça. Emagreça
em sete dias. Pensamento positivo
atrai coisas positivas. Pensamento
positivo afasta gordura. Chegou um
cheque pelos correios. Eu te vi tão
zen. Eu te vi fazendo ioga. Eu provei
o teu placebo. E não é que funcionou!
Hoje contribui com cinco reais. São
as crianças com câncer que pedem mais.
Vamos ver novela. Vamos ver amor e
romance. Mocinhos e mocinhas no maior
clima. Vilões no xadrez. Pegou o buquê?
Amanhã é minha vez? E a lipo? Se sente
bem assim? Acho que perdi parte de mim.
Me sinto bem melhor.

Mares e marés


Em meio às conchas
Lá vem ela.
És pura maresia.
És bela, és bela.

Dos lagos abissais,
Ela vem e me traz
A pérola mais brilhante
De uma ostra flutuante.

Ainda perplexo,
Em tuas escamas
Eu vejo meu reflexo.

Largo a boia
E o castelinho de areia.
Corro até a margem.
Lá vem minha sereia.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Mudo


Nada muda. Sua Coca-Cola
não muda. Nem o assento
da escola muda. Nada muda.

Nem o perfume da senhora
muda. Nem o aperto na sua
gola muda. Nada muda.

Nem o estampido da pistola
muda. Nem o amor de outrora
muda. Nada muda.

Nem a curva em suas costas
muda. Nem o tique-taque das horas
muda. Nada muda.

Nem mesmo sua bermuda muda.
nem o cacho de uvas muda. Nada
muda.

A vida continua sendo muda, porque,
estranhamente, nada muda.

Who?


Eu sou sempre o coelho que
se esconde na cartola.
Eu sou alguém imaginado
o mundo lá fora.
Eu sou o ardente desejo
se alimentando do indesejável.
Eu sou o trem que para na mesma
estação.
Eu sou a ferrugem, a corrosão.
Eu sou um mendigo sem esperanças.
Eu sou a lança que nunca encontra o alvo.
Eu sou o homem eternamente calvo.
Eu sou a tinta branca que apaga a poluição.
Eu sou o mudo cantando no sarau.
Eu sou uma dívida a ser paga.
Eu sou uma pessoa ingrata.
Eu sou a ferramenta do mímico.
Eu sou o caráter de um cínico.

terça-feira, 9 de março de 2010

Curto


Os bracinhos tão curtos e abraçando o ar. Os vizinhos veem aquilo e não dão a mínima importância. Rafaela tem oito anos de idade e precisa mesmo brincar. Seu sonho era ter um gatinho de estimação, mas dá muito trabalho.

O abraço que Rafaela dá no ar, mesmo com os bracinhos curtos e toda fragilidade infantil, seria capaz de sufocar um adulto, de fazê-lo virar criança e cair em prantos. Ela abraçava mesmo, sem dó nem piedade, sem ligar pra mocidade. E quem disse que era só ar e partículas de poeira? Podia não acertar de primeira, mas olhando bem de perto e sendo um tanto esperto, dava pra notar as sobrancelhas, os lábios avermelhados e o cabelinho penteado de lado. Ah! Quer saber? Dane-se se ninguém notava! Rafaela abraçando era o que importava. Ela não pensava em seu próprio umbigo, e o amigo pra ser amigo, tinha de rimar com ela, por isso o menino se chamava Sentinela.

Sentinela carregava na cintura a arminha de brinquedo, podia parecer inofensiva, mas guardava um segredo que enchia todos de medo: um disparo e era fatal, preparava-se o final. Por isso, todos fingiam que Sentinela nem existia, era o medo de se complicar e depois explicações ter de dar.

Rafaela e Sentinela eram bons amigos, uma amizade quase colorida. Culpa dos gizes de cera, que ficavam dando pinta, sem eira nem beira, convidando os dois a rabiscar qualquer parede de primeira.

Rafaela era tão fiel, que quando chegava o seu Emanuel e via aquela danação, a parede mais do que estragada e os gizes quebrados no chão, não poupava aquela bronca. “Sentinela só ronca”, pensava Rafaela. Escutava tudo caladinha, sem dar um pio, mas se já soubesse falar isso diria puta que pariu!.

Os dois já passaram por poucas e boas. Teve o dia que resgataram o Quicky Bunny daquelas corredeiras de chocolate e o devolveram são e salvo à cachoeira de morango. Assistiram juntos “A Hora do Espanto”. Dormiram às quatro da manhã e aprenderam que não precisam escovar os dentes, é só comer maçã. Rafaela desastrada verteu leite pelo nariz, Sentinela que não pensa em nada queria tapar a narina com giz. Certa manhã, Sentinela amanheceu com febre, Rafaela pensou em fazer greve até que ele melhorasse. Ela pegou o termômetro escondido e pôs embaixo do seu braço, mas afundou, caiu no chão e não sobrou um pedaço.

Deitados num gramado do quintal eles observavam as nuvens que pelo céu passavam. E eram tantos formatos, que o mundo todo parecia estar lá. O mundo de baixo, do gramado, e o mundo de cima, do céu. O verde e o azul. O mundo das ideias soprando. Até Sentinela Rafaela viu, numa nuvem que tinha mais ou menos o tamanho de outras mil.

Tudo eles topavam, e não havia perigo pequeno ou grande, mas quase todos os dias tropeçavam numa pedra do tamanho de um elefante. Era quando Rafaela tremia e segurava a mão flutuante de Sentinela, sem saber que ele tremia mais do que ela. Aparecia então, olhando pela janela, aquele velho de barba por fazer, de manchas no braço, que se ela soubesse dizer, diria que lhe dava asco. O velho cuspia um catarro verde, que às vezes grudava na parede, encobria seu giz de cera. O velho só saía para a feira, voltava com alguns poucos legumes e um dia trouxe uma peneira. Sentinela e Rafaela ficavam só de olho, de guarda, espiando feito onça, temendo que dentro da sacola houvesse uma criança.

Mal sabiam eles que o velho tinha um nome, que tinha netos também, e que um dia, quando criança, andou de trem – era o sonho de Rafaela e Sentinela. Pois é. Eles não imaginavam aquela figura com sapatinhos pequenos, com olhar mais sereno, sem barba de rabugento. O velho, quando criança, empinava pipa, sobia na pia, assobiava todo dia, jogava bolinha de gude, tomava banho em açude, rodava pião e levava pontos na mão.

O velho não era mais criança, e por mais experiente que fosse, nunca poderia prever as intempéries do coração. Na rua deserta, só Rafaela e Sentinela. Os dois com um olhar assombrado. O velho em seu pior estado, revirando os olhos e desfalecendo. O que ele está fazendo?, Rafaela perguntou. Curiosos, aproximaram-se, abriram a porta e fitaram aquele corpo estrebuchando no chão. Bateu na cabeça de Rafaela o número da emergência que passava na televisão. Três dígitos.

Foi ao telefone público, mas o bracinho não alcançava direito. Sentinela estufou o peito e a carregou nos ombros. Agora ela era maior do que qualquer um. Falou com uma moça do outro lado da linha e explicou que o velho caiu e pum!

Uma vida então foi salva, naquela manhã tão alva. Alguém deixou de morrer, graças a outro alguém que nem existia. Mas o mais importante de tudo, era que Rafaela não sabia.

Dedicado a Rafaela, que graças à sua existência me trouxe inspiração para este conto e, mesmo longe, sempre me incentiva. Obrigado.

domingo, 7 de março de 2010

Paralela


Depois de um dia amargo,
caminhava pelas ruas de mercúrio.
Carregava o mesmo fardo
no silêncio sem murmúrio.

Aí vem você. Do nada vem.
Pequena, perfeita para meus braços.
Vem como se fosse um trem.
Sei que faço um laço.

Um abraço meio contido,
um olhar só periférico.
Meu coração fica aguerrido.
Crio em ti novo mistério.

Dois minutos de palavras esparsas,
talvez sem importância para você.
Minha mente toma asas, ainda bem
que ninguém as vê.

O que é amor à primeira vista?
É aquilo que se paga a prazo ou
é aquela placa de “invista”?
Podemos ter um caso?

Deveria ter te espiado mais.
Agora não sei bem te descrever.
São coisas que a timidez nos faz,
mas ainda me lembro de você.

O nome me deixou em dúvida.
Não o ouvi muito bem.
Pensei pelo resto das horas, mas
que importância isto tem?

Acho que os olhos eram pintados
castanhos daqueles cor de mel.
Teus braços em volta do meu corpo e,
ah! eu estaria de novo no céu.

Paramos. Fomos nos despedir.
Quem sabe o tempo não congela?
Você disse: “Minha casa é aqui”.
Agora eu passo e olho pela janela.

Nunca ninguém visível,
só a luz do quarto acesa.
Penso como seria incrível,
se eu gritasse: apareça!

Mas eu nunca te visitarei.
Rodeio-me com a solidão
e dela me sinto rei
trafegando por lei na contramão.

Queria cantar pra ti assim
um pouco bêbado, atrapalhado.
Queria cantar que nem Jobim:
“Vem cá, Luiza”, vem do meu lado

mas teu nome é diferente.
Não importa como a gente chama,
importa é como a gente sente.

Nem Sempre


Às vezes, a gente se sente tão
só, que nem parece que sente.
Às vezes, a gente parece tão dor,
que nem parece que sente.
Às vezes, a gente nem coloca meia.
Às vezes, o cabelo a gente nem penteia.
Às vezes, a gente anda tão nu que a
solidão incendeia.
Às vezes, a gente fica com a fuga atrás
da orelha.
Às vezes, nos tosam que nem ovelha.
Às vezes, a narração do minuto é
mais comprida que o resumo do dia.
Às vezes, é muita covardia.
Às vezes, é perda de tempo.
Às vezes não se sabe quantos
às vezes cabem de uma só vez.

A Partir de Agora


Este conto resume bem minhas impressões sobre meu trajeto quase diário à universidade. Coisa que requer de mim um certo esforço emocional.


Chegou a hora. Vejo no relógio. 18:15h. Chegou o momento de sair por aquela porta. Meus cabelos moldados pelo travesseiro, meu eu sem camisa. Alguém que não quer partir, que prefere ficar à deriva de dias lerdos. Vejo em cumprir a obrigação apenas um requinte masoquista. Sem mais resistência, visito o cadafalso todos os dias. Aliso meu pescoço como se nele vivesse uma gravata fantasma que aperta, nunca cede. Entrego-me logo às aulas de Direito, aos dias. Entrego-me logo ao chuveiro. Antes, checo a roupa. Escolho uma qualquer. Ponho sobre a cama.

Desce a água, molha a cabeça, e eu poderia ficar mais. Poderia viver mais sob o chuveiro e achar que é tudo água, que tudo escorre pelo ralo e vai para um esgoto comum. Mas me sinto pressionado. Tenho de ir. Tenho de cumprir logo. Não importa o atraso, não importa a pontualidade. Apenas corro como alguém que anda sem parar. Corro como alguém que vive parado. Correr para sempre é nunca mais se mexer. Fecho o chuveiro, me enxugo, escovo os dentes, passo os dedos entre os cabelos.


Cueca, calça, camisa, meia, tênis. Estou pronto. Até que ponto vestido? Não sei. Abro a porta, despeço-me de minha mãe. Caminho ainda tentando corrigir a postura. Piso os pés na calçada. Sigo o rumo que sobra. Vejo as velhinhas sentadas, conversando sobre o quê? Não sei. Sobre a igreja? Prefiro imaginar que conversem sobre perversidades. Perversidades mais perversas por serem velhinhas. Enfrento o declive. O lava jato, a delegacia, a biblioteca pública. Passo pela luz do poste, sempre olhando em sua direção, ofuscado, quase no mesmo ângulo de visão que tenho da lua. Imagino um eclipse, do meu mundo, pequeno, do poste, com o desconhecido, a atmosfera lunar.

Na rua, os carros passam, as motos cortam o ar, superlotadas, as bicicletas tentam chegar a algum lugar. Espero, me irrito com esse improvável trânsito. Mais velhinhas na calçada, aproveitando a velhice. Como é bom ficar velho. Atravesso a rua, subo alguns degraus da igreja da matriz. Tenho a impressão de que as velhinhas me olham pelas costas, de que se perguntam por que eu não me benzo como todos. Talvez não se perguntem sobre isso, mas eu imagino alguém reparando em mim.

A praça e suas luzes, suas pessoas, suas fontes de água. Quase como um Lego empoeirado, montado há anos, sem mover uma peça. Um senhor de cabelos brancos e meio calvo fala comigo, acena com o braço. Eu paro. Quero ser gentil, dar ouvido a todos. Ele me pergunta se não quero livros, bons livros. Fala sobre os livros, diz que são difíceis, diz que pagou muito por eles com todas as tarifas dos correios. Sinto muito, senhor. Eu não quero seus livros, mesmo que tivesse dinheiro. Acho que ele quer uma companhia, alguém para falar sobre livros. Alguém para falar sobre João Cabral de Melo Neto em meio àquelas merdas de pássaros que cobrem o banco. Senhor, venda seus livros para as velhas, elas precisam mais do que eu, pensei enquanto olhava um pardal morto perto dos meus pés.

Atravesso outra rua, na calçada, pessoas bebendo. A TV do bar ligada exibindo futebol. A fumaça e o cheiro de carne queimada abraçam por um momento meu corpo. Próximo a uma farmácia, velhos jogando dominó, sentados, batendo as peças com força, eufóricos. Lembro do dia que eles começaram. Eram um ou dois, desanimados. Agora eu os vejo apostando dinheiro, cobrando os que devem, exaltando suas potencialidades no jogo. Como é bom ficar velho. Nós nem precisamos viver, apenas sobreviver.

Becos, ruelas, aperto. Divido as calçadas com cadeiras, bicicletas, caixas abandonadas. Desvio. Exercício constante. Queria poder seguir reto às vezes. Apenas fechar os olhos e seguir, mas sempre tem algo deixado no caminho pra gente tropeçar. Por isso mantenho os olhos abertos, o suficiente para enxergar meu reflexo num espelho ao fundo de um velho salão de cabeleireiro. Tesouras sujas, enferrujadas, atracadas nos dedos. Tesouras que decepam orelhas como borboletas carnívoras assanhadas. As luzes fracas de mercúrio, penumbras assombrosas. Minha sombra projetada no chão, menos apática que eu. Aí vem aquele cheiro, suave mas incômodo. O cheiro da madeira dos caixões que esperam seus cadáveres em pé. A madeira velha, no ponto, quase como um instrumento musical. Madeira influencia diretamente na afinação. E, no meio de todos aqueles caixões dispostos um ao lado do outro, um velho assistindo TV, sem camisa, sentado numa cadeira de balanço, vendo a novela sem preocupar-se com a morte. Como é bom ficar velho.

Passo por alguns mototáxis na esquina. Parecem solitários, sempre esperando alguém que requisite seus serviços. Eles olham ao longe e contam piadas escorados na parede. O asfalto vai ficando mais sujo, mais marcado. Sinto cheiro de peixe podre, cheiro de mercado municipal. Desvio de um pedaço de carne jogado no chão. Tomates, batatas, cebolas, todos esmagados, colados no piche, como se brotassem dele também. Tenho este como meu lugar preferido da cidade. Pelo menos é o mais honesto, sem maquiagem alguma. Caminho ouvindo os gritos da sujeira emanada pelos poros do lugar. É a verdadeira pele que vem à tona empapada de saliva, de urina. Quem sabe sangue? Quem sabe esperma? Sinto meus pés sujos, minhas solas marcadas, meus pensamentos perdidos sob um véu negro intransponível. Um véu que cobre toda a cidade por mais iluminado e perfumado que seja o ponto.

De esquinas vivem os bêbados. Sempre um bar aberto esperando o desejo por aguardente. E os clientes estão lá, sedentos por algo que lhes faça esquecer o dia. Alguns fazem bem, ficam no caminho, entulhados no chão, quase como as caixas esquecidas. Perto deles, uma poça, e na poça, um gatinho. Deve ter esquecido de comer e bebeu muita água. Lá, apodrecido, respeitoso. Só fede quando bate a brisa. E ele me deixa passar. Bares, sinais de trânsito, mercadinhos, um móvel antigo bloqueando a calçada, buracos, tampas de garrafas, cigarros, tijolos... Eu é que me embebedo dos personagens cotidianos que vivem intensamente meu caminho perdido. Nunca poderei lembrar de apenas um, somente de todos. Porque eles compõem e personificam a sinceridade do fracasso. Programado para parar em um ponto, eu simplesmente deixo de andar e me sento naquela cadeira da faculdade, inodora, mas quase tão fúnebre quanto a madeira dos caixões.

Companhia de Ninguém


Escrevi este conto durante o período que passei quase um ano morando num apartamento em Juazeiro do Norte, longe de qualquer pessoa, sem sair de casa e sem internet. Acho que sou indiferente a ele. Talvez isso seja bom, pois já não parece tanto que eu o escrevi.


Companhia de Ninguém


Duas e meia da manhã. Lua cheia, bonita. Céu sem estrelas. Dois dias seguidos sem dormir. Hernandez olha pela janela e observa o cenário perfeito para uma saída com os amigos. Quem sabe, mesmo um encontro a dois. Seria ideal se o silêncio vindo de fora não lhe trouxesse uma amargura crua. Nem mesmo um maltrapilho vasculhando latas de lixo na rua para se observar. Para ceder um pouco de longínqua companhia. Não mesmo. Seria perfeito se o silêncio de fora não trombasse com o som estridente de dentro, da Televisão.

Hernandez sabia que um dia isso ia acontecer. Que os amigos, que os amores, que os parentes, todos eles, todos eles iam de se esvair. Só não sabia que seria tão rápido. Só não sabia que seria antes dele ser atropelado e passar o resto da vida sendo alimentado por tubos.

Os estranhos lhe significavam os restos da alma humana que pairava sobre seus devaneios. Estranhos que, pensando bem, poderiam ser tão afáveis, tão cheios de respostas e correspondentes ao modo de vida de Hernandez. Este, já era mais um de seus devaneios. Estranhos suspensos sobre seus devaneios. Eles permaneciam inabaláveis, com sua vida a seguir, sorridentes e atarefados. Bons amigos passeando com o cachorro, boas esposas indo embora pela vitrine. Todos expressavam virtudes, maquiavam o que de mau lhes restava e pareciam normais. Abundantemente normais. Relaxados com a vida e com os dias que estavam por vir. Hernandez não. Não conseguia: barba por fazer, ombros caídos. Descuidado. Ele tropeçava dezenas de vezes ao dia. Em um desses, esbarrou sem querer num poste, quase quebrando o ombro. Ficou fascinado por seios medianos - mas tão empinadinhos - de uma moça que vinha em sentido contrário ao seu. Ele não devia ter feito aquilo. Agora, obviamente ela pensa “Homens, sempre deixando levar-se pelo instinto.” Mas ele não! Ele era sensível. Sentia muito pela situação. Sentia muito pela mocinha ir embora levando seus seios simétricos e uma imagem errada de sua pessoa.

Como todos os pensamentos que vêm e vão, mais um se fora: o da mocinha de seios arrebitados se fora, dando lugar a “por que tudo anda tão vazio?” Hernandez se via impotente a tentar responder. Olhava pela persiana buscando explicações. A essa hora da manhã só acharia um ambiente desértico. Nem mais os acidentes do cruzamento, que lhe acordavam feito despertador, ocorriam. Lembrava que, há uns meses, estes eram muitos. Crash pra lá e crash pra cá. Retrovisores de um lado, carne de outro. Não demorava e as pessoas se aglomeravam, causavam burburinho. Olhavam a vítima agonizar. Um ou outro samaritano ligava para a emergência. O resto vinha mais pela curiosidade. Chegavam de mansinho, compartilhando olhares sádicos. Hernandez ficava apoiado no parapeito da janela, observando toda aquela movimentação. Todos aqueles cochichos e inquietações. Chegava a emergência e acabava a festa. A multidão dispersa retornava de onde veio cheia de más e fresquinhas notícias para contar.

A prefeitura pôs postes, melhorou a sinalização, revogou a lei de Murphy. As pessoas ficaram recatadas. Hernandez não saltava mais da cama ainda enrolado nos lençóis para olhar pela janela. Ficou mais Zen só fitando quatro paredes. Quatro ou quantas fossem, não importa. Sempre pareciam um quadrado, uma caixa. E das formas geométricas, ele preferia a esfera. Tinha alguma ligação com o futuro. Prever o futuro. Atrativo, quando este parece eternamente o presente.

O destino aprontou com ele. Não previu a falta de ração no aquário esférico de Henry, seu peixinho dourado. Hernandez esqueceu do presente tão latejante e acabou deixando morrer a única forma de vida que não se resumia a pixels em seu lar. Pobrezinho de Henry que, molhado, acabou morrendo seco de fome. Era algo para se pensar. Se pensar nessa ação tão impensada. “Isso, se culpe, Hernandez, se culpe...”, pensava, num momento de autopenitência. Momento de luto. Esvair mais um peixinho pela privada ou experimentar o gosto do amigo grelhado na manteiga? Sem mais cerimônias, ele deixou Henry lá, deitado sobre o barquinho pirata que servia de adorno. Depois pensaria em algo mais elaborado. Uma caixinha de fósforos cheia de flores para se sepultar no jardim – caso houvesse jardim –, ou, quem sabe, um vôo literal até as nuvens, amarrado numa pipa. Planos de uma última homenagem merecida ao amiguinho de sempre que nunca abriu a boca para reclamar. Que nunca usou as guelras para outra coisa a não ser para puxar oxigênio. Uma pena.

A Televisão trazia as pessoas para dentro de seu apartamento. Um pouco de gente, direito dos satélites, das ondas fantasmas. Exatamente três da manhã e os canais na ativa. Explosões de hormônios, de sexualidade. Explosões de religiosidade, de fanatismo. Explosões de carros, explosões de casas. Explosões de jóias, de quilates. A grande explosão na guerra de audiência daqueles insistentemente acordados. Todos explodindo, um atrás do outro. Um atrás do outro, como num trem a ponto de descarrilar. Era frenético, psicodélico. Hernandez recorreu à TV, esperando o sono chegar, esperando o sol raiar, o dia nascer, a hora do rush ferver, e encontrar alguém para ajudá-lo a consumir uma noite.

Seus olhos ziguezagueavam involuntariamente. Pareciam querer saltar dali. Correr de sua face e se divertir à luz dos outdoors. Recostado numa poltrona aconchegante, ele virou a cara. Desviou os olhos enérgicos da TV. Mantiveram-se abertos, como se nas pálpebras houvesse pregos pontudos. Ficou só com o som e as cores – quase cromoterápicas – impressas no ambiente escuro.

“Você que está perdido, que está largado, que não consegue mais ser feliz, não consegue mais ter um amor, não consegue estabilidade financeira. Venha até nós e desamarraremos o seu nó. Cristo desamarrará o seu nó – retificou o pregador. O endereço é...”

Hernandez estava melancólico, mesmo assim, conseguiu sorrir com a proposta do pregador que se esgoelava pedindo para que os telespectadores levassem suas roupas suadas com nós à igreja mais próxima. Muitas. Muitas igrejas. Pareciam redes de hipermercados espalhadas por todos os lugares.

Pegou o controle. Mudou de canal. Shopping na TV, mais shopping, Frankenstein, duas loiras peladas se encharcando. Estava fatigado daquilo e não podia dizer a ninguém. Pior, não havia ninguém. Hernandez estava silenciado por essa liberdade, ou esse vácuo que o rodeava.

Silêncio. Um silêncio ensurdecedor. A Televisão sem som. Apertou sem querer com o cotovelo o mute no controle remoto. Nem se deu conta. Apenas relaxou. Esticou os pés ainda de meias. Fez um carinho na nuca.

Pela janela, o asfalto preto. Velho. Linhas brancas que nunca se apagam. Madrugada e pessoas correndo com peças de banho pelas ruas. Tudo bem que nunca fazia frio, mas era extravagância demais, até mesmo para uma festa temática. Sua festa? Pelo menos no bote salva-vidas que um homem de peito depilado, só de calção de banho, carregava. Estava escrito “Hernandez”. Que bela homenagem! Uma bela homenagem de amigos que Hernandez nunca ouvira falar. Isso que é dedicação. Impressionou-se mesmo foi com a sósia da Pamela Anderson. Era um clone fiel.

Estava feliz. Hernandez não podia mesmo conter o sorriso no rosto. Ele não gostava disso de mudar da água pro vinho. Preferia manter certo desdém no início e depois ir se derretendo aos poucos, se entregando aos poucos. As pessoas gostavam e também lhe davam mais valor. É o charme de chegar atrasado. De deixar todo mundo te esperando.

Só precisava interfonar para o porteiro e permitir a entrada de todos os seus mais novos amigos. De corpos esculturais, descolados e com óculos de sol, eles cheiravam à praia. Cheiravam à maresia. Todos lá embaixo, radiantes. Loucos para subir e comemorar a bênção de um bom companheiro.

“Alô, Edmar”, disse Hernandez, ao interfone. Supunha que fosse Edmar do outro lado da linha.

“Alô...”, não era. Voz feminina. Falha, fina.

Edmar poderia estar em um momento íntimo. De certo, recebeu adiantado e contratou logo os serviços de uma prostituta. Estava com a razão. Não ia era ficar sozinho. Assim como Hernandez, que não adiaria sua festa por nada. “Então, Edmar, fique com sua festa que eu terei a minha” ele pensou.

“Desculpe incomodar, mas, por favor, o Edmar está?”

“Sim... está” hesitou ao telefone.

“Passe para ele, sim?”

“Ele não pode atender. Matou-se agora há pouco. Enfiou uma chave no ouvido e foi lá dentro. Disse que queria abrir a mente.”

Hernadez emudeceu. Impossível saber o que dizer. Apenas largou o interfone e caiu de costas no sofá. Tudo bem Edmar ter se matado. Tudo bem mesmo. Aquele maldito porteiro inútil. Agora doía era a cabeça de Hernandez. Do silêncio a um zumbido ininterrupto, grave e poderoso, tremendo todo o crânio.

Olhou através da janela para seus novos amigos. Buscando mais uma ajuda, quem sabe. Mas a língua enrolou. Só escorria baba da boca. Continuou olhando, mostrando seu estado. Uma imagem vale mais do que mil palavras. Ninguém a se manifestar. Estáticos os manequins permaneciam. Cheiravam praia, cheiravam maresia. Cheiravam sangue com seus maiôs vermelhos. Alto-mar e tubarão. Silêncio com o caos instalado. Asfalto morto e sangue semivivo. Hernandez arquejou. Espirrou. 160 km/h de um trem passando por seu nariz. Única e exclusivamente pelo seu nariz. Mandou para fora, seu cérebro, ainda preso por um só fiozinho de carne. Aquele fiozinho de carne. A linha entre a existência como ser e o pó. Teria morte cerebral comprovada por um maldito médico, seu vizinho, que cortava perus de transexuais nas operações de mudança de sexo e os fritava no jantar.

Hernandez tentou pôr a cabeça no lugar, ou melhor, pôr o cérebro no lugar e buscar a melhor saída.

Tudo tão absurdo e horrendo. Não se sabia nada sobre a melhor saída. Só se escutou um estalo vindo da tomada da Televisão. Umas faíscas saltaram fora. A imagem tremulou e retornou ao que era. Hernandez deu por si, assustado, sem o cérebro por um fio, sem Pamela Anderson e seus galões de silicone, sem seus amigos praieiros, sem Edmar de mente aberta. Mas ainda os sentia, como membros fantasmas. Parecia algo verídico que por ali passara.

Hernandez, desnorteado, sem saber o que, quem, para que, onde, quando. Sem saber de nada, do nada, estava bem em frente ao computador, ligado. A luz perturbando seus olhos. Vira uma vez na TV que é recomendável, na hora do sono, ficar longe de qualquer aparelho eletrônico que possa lhe estimular, lhe excitar, fazer-lhe ficar ligado, cheio de informação. Vira também o estudo das ondas eletromagnéticas. Ondas de rádio, de Televisão, ondas da rede mundial de computadores, serviços de telefonia móvel... Invisíveis, trombando, aglutinando, repondo informações e, quem sabe, doenças. Nada comprovado, mas Hernandez tinha alguns palpites.

Quase o terceiro dia sem dormir. Sem um cochilo sequer. Olhos secos. Teve alucinações de olhos abertos. Seria mais reconfortante se houvesse sido um pesadelo. Um pesadelo toda noite. Ele trocaria. Trocaria pelo direito de dormir. Se bem que, a essa altura, os pesadelos já se faziam presentes, e reais.

Era uma noite enorme. Daquelas que se pode quase ter a certeza de que o sol morreu. Hernandez tinha essa certeza. Parecia um fantoche, só esperando a próxima ordem dada por ele mesmo. Dada pela nuvem de estranhos que, a essa hora, dormia tranquilamente. Dada pelas ondas eletromagnéticas que vagavam solitárias.

A próxima ordem era estranha. Na tela do computador, ele viu um formulário digitado e preenchido. Tudo sobre sua vida. Das maiores futilidades possíveis ao seu eu mais profundo e íntimo. Uma foto na capa, Hernandez, sorridente, bonito. Bela iluminação. Mas como seria capaz de digitar tudo aquilo em transe? Psicografia?

Gostava da macarronada, odiava gatos e desenhos japoneses. Mulheres? Ah, sem tantas exigências. Apenas uma que conseguisse dormir nas horas certas. E trabalhar nas horas certas.

Imprimiu o que pôde, até a tinta acabar. Pôs as impressões em volta do braço e saiu por aí. Ninguém na rua. Só a madrugada densa de companhia. Hernandez festejando, com seus papéis, esvoaçantes. Sujando as ruas que pareciam ceder todo seu espaço para apenas um ser humano. Viu-se um vira-lata ao longe rasgando uma das folhas, partindo sua face impressa em pedacinhos.

Hernandez chegou em um poste e quis colar um. Não tinha cola, mas experimentou como ficaria sua foto sob a luz fraca, destacada sobre o poste, sobre os anúncios políticos e pichações. “Bem”, ele pensou. Lembrou dos avisos de “procura-se”, nos filmes de velho oeste.

Depois de tudo, sentou-se. Sabia que acharia amigos que o leriam por aí. Melhor, eles o encontrariam. Embaixo de bancos, pendurado em árvores, grudado em janelas, rodando em pneus. Ele estava em todos esses lugares. Só precisava de uma conexão. De alguém que cedesse dois minutos de seu dia para ler uma folha amassada e pisada no chão. Eles o encontrariam, de uma maneira ou de outra, o encontrariam. Quantos garis, trabalhando no lixo, não gostariam de levar sua história para casa, de lê-la no trabalho. Hernandez gostou da idéia. Salivou pensando o quão doce seria. Caiu em posição fetal e dormiu. Quem sabe alguém não o encontraria?

No Balanço das Horas


Tirei este conto do fundo da gaveta. Fazendo uma comparação com o que escrevo hoje, apesar de se encontrar vários pontos semelhantes, ele deixa transparecer um ar ingênuo, mas não propositalmente. Acho que eu devo tê-lo escrito entre 2005 e 2006. Como recordar é viver, como viver é passar o tempo, como o conto fala sobre tempo , um texto de outro ano, de outra época, de outra percepção, é bem propício.

No Balanço das horas

Os dias ensolarados sempre são considerados dias felizes. Hoje, mesmo com os raios luminosos do sol, meu dia foi cinza. Não me entristeci, nem me revoltei com nada, apenas observei o dia passar de forma contemplativa.

As pessoas pensam, reclamam consigo mesmas por nunca pararem para observar o dia, agradecer à natureza, prestar atenção na moça de olhos bonitos, ou até mesmo brincar com o filho em um parquinho qualquer. Eu não quis fazer nada disso, mas observei tudo de uma maneira estranha: vi números nas pessoas. Depois de passar por uma loja de relógios, senti-me adormecido com tantos tic-tacs, com tantos pêndulos, com tantos cucos. Estava hipnotizado. Sentei-me ainda tonto num banco antigo perto da loja. Chacoalhei a cabeça e surpreendi-me com tamanha diversidade encontrada à minha frente.

Meus olhos seguiam os passos dos transeuntes como se segue uma bolinha de tênis de um lado para o outro em uma partida emocionante. Sapatos tão diferentes, pêlos das pernas de diversos tamanhos, calças ridículas, mulheres gestantes, velhinhos com bengalas estilizadas, e muitos números com a cor dos ofuscantes raios de sol. Percebi que, assim como as pessoas, todos os números eram diferentes, nem que fossem por milésimos. Ainda assim eram diferentes. Números que se esbarravam, pessoas disputando o mesmo espaço. Depois do choque, temos tempos que se cruzam atrasando-se simultaneamente como num jogo, em um desafio onde todos estão em busca de algo.

Pensei nos milhares marcadores de tempo, desde os milenares, funcionando através dos raios de sol - coincidentemente como esses que agora observava -, até os digitais, precisos, atômicos, que nunca chegam a atrasar um segundo em séculos. Senti que os relógios mais importantes eram os que eu via. Tantos números e todos com tantas histórias para contar. Olho para o engravatado, parece ser bem sucedido, seu relógio tem as horas curtas, ele precisa enriquecer mais e deixar um patrimônio para os filhos. Olho para o senhor com roupa modesta, com cara sofrida e calos nas mãos, seu relógio tem as horas curtas, ele precisa trabalhar para sustentar seus filhos e terminar de pagar todas as prestações do seu plano funerário. Olho para a prostituta, seu relógio tem as horas curtas, ela precisa transar mais e mais até que acabe a noite e, para ela, literalmente tempo é dinheiro. Olho para o rapaz perturbado, com as mãos ainda sujas de sangue fresco, talvez um assassino, seu relógio tem as horas curtas, tantas vítimas para estripar, e, precocemente preso, com tantas horas atrás das grades.

Observei tudo e todos, vi seus problemas, seus anseios e soluções através de números, números esses que, assim como o sol ousam em se apagar uma hora. Tanta pressa, tanta correria, tanta ousadia. Tudo isso pela mesma causa: o tempo que não pode ser parado, que não pode se esperado, que vive com as pessoas, que não define se elas são más ou boas. Tudo vai escurecendo, a lua toma o lugar do sol e, quem passa, abandona por um momento o seu marketing pessoal. O advogado talvez já esteja em casa, depois de transar com uma prostituta, encontra-se muito cansado para a esposa e sem tempo para os filhos. A prostituta se encontra com o órgão sexual adormecido. É hora de contar o dinheiro para ajudar no sustento do seu pai, um senhor modesto que, a essa hora, já deve estar jogado no chão depois de receber um golpe de machado na cabeça executado por um assassino que agora está atrás das grades, esperando um defensor público, que já não tem mais tempo para a esposa e os filhos. Tudo agora tão parado... Enxergo o que talvez seja minha última visão agradável desse meu dia: um relojoeiro sem tempo para com o relógio fazer tantos tempos.

Visita


Tarde da noite. Nem sei que horas da noite, mas tarde. A janela entreaberta e a luz forte da lua a penetrar. Minha mãe na cadeira de balanço, balançando, mas dormindo. Sonâmbula. Alguns pedaços de tricô, agulhas e panos esfarrapados sobre seu colo. Eu passava por ali. Ia direto para meu quarto, mas tinha alguém na sala. Parei para ver quem era. Minhas pernas já trêmulas. Adrenalina bombardeada. Mas, calmo. Fingi estar calmo. Devagar, acendi a luz.

Era simpático o rapaz sentado na poltrona. De pernas cruzadas, calça jeans justa e um terno preto. Ele, desde o escuro, tinha os olhos em mim. Já me esperava ali. Sabia que eu ia acordar e tomar um pouco de água na cozinha.

“Estive te esperando por um bom tempo”, disse-me, animado, deslizando os dedos pelo estofado da poltrona.

“Acho que está havendo um equívoco aqui”, eu respondi, ainda fingindo estar calmo.

“Equívoco nenhum.”

Fiquei por um momento tentando rastrear aquele rosto na minha memória. Aquele rosto jovem, mas com um pouco de rugas. Com um toque de velhice. Queria não ser descortês, mas não lembrava. Tinha de perguntar. Para minha segurança, eu tinha de perguntar.

“Realmente sinto muito, mas não sei quem é você.”

“Sei que não me conhece, meu caro amigo. Só eu lembro de você.”

Certo, eu tinha de manter a calma. A pouca calma que fingia ter. Poderia ser um sequestrador, daqueles dos sequestros relâmpagos. Mas eu não tinha dinheiro. Melhor, minha mãe não tinha dinheiro para pagar o resgate. Ele iria cortar cada pedacinho meu e enviar pelo correio de aperitivo. Uma orelhinha, depois um dedo, depois um nariz. Cada coisa por vez. Cada coisa por semana. Certo, eu não preciso me desesperar. Não devo fazer movimentos bruscos. Mas e se ele for um serial killer? Se ele for alguém que nem o dinheiro para. Que só quer mais um corpo na sua mesa de cirurgias? E se ele for apaixonado por mim? Um daqueles admiradores secretos obsessivos? Tenho de me concentrar no telefone. Tenho de me concentrar no telefone. No telefone vermelho, reluzente. Tenho de segurá-lo firme e acertar sua cabeça. Na nuca, para desacordá-lo. Se eu matá-lo, será legítima defesa. Não consigo. Minhas pernas estão tensas demais para se mexer. Perdoe-me, mãe. Eu falhei desta vez. Escorraçar um bandido de casa e não consigo. Desculpe-me. Vou fazer o que ele quiser para tentar permanecer vivo. Espero que Deus tenha piedade de mim. Sei que Deus não tem nada a ver com isso. É, eu sei. Que pelo menos não doa, Deus.

“Você parece nervoso”, ele disse. “Desculpe-me pela maneira que te abordei. Isso de ficar esperando no escuro não foi uma boa ideia, mas sua mãe permitiu que eu entrasse. Vi que ela parecia dormir e apaguei a luz para não incomodá-la.”

Então era isso. A velha agora colocava estranhos dentro de casa. Não bastava os chiliques que ela dava achando que alguém mexeu nos seus tecidos, tesouras, agulhas. Ela, sempre ela. Ela mesma. Só que esquecia do que fazia. Esquecia com frequência. Não esquecia de esquecer. Nunca me incriminava diretamente. Mas passava horas gritando: “Alguém mexeu nas minhas coisas! Quero saber quem foi o maldito bandido!” e ficava olhando para mim. Quando isso acontece, sempre tenho de procurar as velharias da velha. E sempre as encontro nos lugares mais inusitados: pia, geladeira, jardim. Espero não encontrar agulhas na comida.

Ele aproximou-se de mim amigavelmente. Não reagi. Eu era só um corpo que obedecia ao que ele queria. Com aquela mão no meu ombro indicando a direção.

“Tem mais alguém aqui te procurando.”

Mais alguém? Era o carrasco? O executor? Adeus, dias cruéis! Fomos até meu quarto. Meu quarto escuro, frio, desgastado. Meu receptáculo de todas as noites. Arqueei as sobrancelhas, porque suas características mudaram.

“Veja, seu nome é Elisa”, disse o rapaz misterioso, apontando para uma garota que parecia ter aparecido ali depois de um nariz retorcer. Depois de um pó de pirlimpimpim.

Ela, sentada, sorridente, acenou para mim. Disfarçou o riso. Rodopiou na cadeira. Sorriu de novo. Maluca. Com plumas em torno do pescoço. Ela estava feliz. Muito feliz. Rodopiando. Se exibindo para mim.

Meu quarto, redecorado, vivo, cheio de cores, piscas-piscas, globo de luz iluminando um música indecifrável. Meu quarto zumbi, derramando uma urbanidade doentia, do concreto que retém as pessoas em casa. Nós três, lá, aconchegados, no meu quarto. Eu não sabia o porquê. Não precisava de perguntas. Assim que vi Elisa, assim que seu perfume se misturou às minhas coisas, àquelas luzes, eu soube que ela poderia ficar lá. Nós três. Obrigado, rapaz, por ter me apresentado Elisa. Nós três.

“Entre, Ana”, ele falou e interrompeu meu pensamento.

“Entre, Ana”, reforcei.

Ana esfregou suas botas de cano curto no carpete e entrou, tímida. Ria menos por conta da sua timidez. Era linda. Não tanto quanto Elisa, mas ainda sim sublime. Ela se aproximou. Aproximou-se do meu amigo misterioso. Encostou-se em seu ombro. Conhecia meu amigo misterioso e não dava bola para mim. Ainda bem que não, para não causar confusão. Ela dava bola para o rapaz misterioso. Elisa era quem dava bola para mim.

Ai, ai, Elisa. Você aqui e eu não sei nem o que te dizer. Também não quero dizer nada. Não quero estragar as coisas. Já me afundei tanto em palavras que não há mais sentido em repetir isso. Já me afundei tanto querendo explicar detalhe por detalhe, centímetro por centímetro, átomo por átomo dos meus sentimentos para que as pessoas acreditassem. Não precisava mais disso. Era só me deixar guiar pelos teus olhos fugidios. Teus olhos que não param quietos um minuto.

“Vou pegar cerveja para nós”, eu disse. Elisa veio comigo.

Eu me senti bem. Senti-me independente. O rapaz com a sua. Elisa comigo. Era uma noite legal. Elisa pegou a sua, eu peguei a minha gelada. Levamos três: duas para o rapaz, uma para Ana.

A cerveja ótima, no ponto. A espuma boa. A cevada boa. Eu e Elisa calados, encostando o gargalo nos lábios, brincando com a saliva e o resquício de cerveja na boca. O rapaz e Ana conversando freneticamente. Nós quatro sentados na cama. A música rodando. Rodando tão indecifrável quanto o que o rapaz e Ana diziam. Elisa finalmente disse algo. Não entendi:

“Onde fica o banheiro?”

“Hã?”

“Onde fica o banheiro?”, disse mais perto do meu ouvido, com aquele hálito de menta e cerveja.

“Eu te mostro”.

Levantei-me e fui lá, mostrar o banheiro. Era a cerveja fazendo efeito. O rapaz e Ana não olharam para nós. Eles continuaram a conversar. Eram muito legais.

Elisa fechou a porta. Eu fiquei esperando ela ali. Sentia falta. Ficava com medo de que não saísse mais de lá. Demorou um pouquinho. Acho que travou no começo por estar numa casa estranha. Depois escutei o xixi batendo no vaso. Ela demorou mais um instante. Abriu a porta. Sorriu para mim. Olhei seus dentes alvos, seus lábios rosados. Lembrei-me do cheiro de menta e de cerveja que ela bafejou. Aquilo me deixava vivo. E que delícia seria se eu pudesse sentir de novo, mais perto. Se fosse um beijo com aquele bafinho. Eu pensava rápido nessas coisas. Pensava enquanto ela se recompunha do banheiro. Enquanto terminava de enxugar as mãos na calça jeans.

A segurei pelo braço e nós voltamos. O rapaz e Ana a mil. Conversando como antes. Os dois davam pequenos saltinhos na cama quando iniciavam uma frase. Fervilhavam os dois. O rapaz não poderia ser mais denominado de rapaz misterioso. Ele tinha deixado a identidade e alguns trocados em cima do meu criado-mudo. Estavam amassados. Tirou do bolso de trás da calça. Eu olhei. Olhei e ri. Seu nome era João. Não poderia mais chamá-lo na minha cabeça de rapaz misterioso. Ri da foto 3x4. O cabelo dele grande, encaracolado, diferente de agora. Um aparelho nos dentes, uma espinha enorme bem no meio da testa.

“Ei, Elisa, olhe”, eu disse, segurando a foto no alto.

Elisa se aproximou, pôs os olhos próximos e riu. Riu feliz e caiu em cima de mim. João – ai! que falta faz chamá-lo de rapaz misterioso -, puxou a identidade da minha mão com força, também sorrindo.

“Essas fotos são horríveis. Nem Scarlett Johanson ficaria bem numa assim”.

“Scarlett Johanson”, eu disse, “por que logo ela?”

“É a minha musa pessoal.”

Ana deu um tapinha no braço de João brincando de ciúmes. Ana era dona dele então. Namorada de João. João e Ana, legais. Eu e Elisa, ainda a sobrar. Eu tinha de ser mais incisivo, menos covarde. Elisa estava na minha, eu acho. A noite perfeita. Tudo colaborava. Elisa perto de mim. Ai, Elisa. Fingi pegar algo no criado-mudo. Passei o braço por cima dela. Encostei o nariz nos seus cabelos. Àquela altura, estávamos perto demais. Captei seu segundo cheiro. Aqueles cabelos macios no meu nariz. Aquele cheiro de shampoo infantil me fazia lembrar a infância. Fazia-me lembrar de quando escorreguei no banheiro e rachei a cabeça. E do sangue aflorando, cobrindo meus olhos, meu nariz, a boca. Eu nu, água, suor, sangue. As coisas vermelhas. Esta lembrança agora parecia uma pétala de rosa caindo, graças a Elisa. Graças a Elisa que usa o mesmo shampoo que eu usava naquela época. Naqueles bons tempos, que ganhar um brinquedo com a cabeça rachada e no hospital era felicidade.

Voltei. Retornei da imersão nos cabelos de Elisa. Ela riu. Gostou do quase abraço surpresa. Disse que queria brincar comigo. Brincar como? Não com meu coração, não é, Elisa?

“Vou te maquiar.”

Ah, não. Era humilhação demais. Por favor, Elisa, não queira que eu seja seu amigo gay. Não levo jeito para essas coisas, sinceramente.

“Confie em mim”, ela disse, tirando o estojo de maquiagem de uma bolsinha preta.

Não poderia negar esse capricho a Elisa. Queria continuar sentindo o cheiro dela. Sei que Ana e João ririam de mim. Mas seria divertido até.

Seus dedos se aproximaram do meu rosto, cobrindo-o com pó-de-arroz. Estava quietinho, esperando ela terminar. Estava olhando para suas mãos, fininhas, o esmalte descascado. O esmalte vermelho, da cor do meu sangue no banheiro. Suas mãos exalavam o terceiro cheiro. Adocicado. Cheiro de produto tóxico que dá vontade de comer. Cheiro de detergente de maçã. Elisa parecia feliz. Eu não me sentia tão bem em vê-la rindo da minha cara. A verdade é que nunca me levaria a sério.

“Estou quase terminando”, ela me acalmava.

João e Ana ainda não haviam prestado atenção em mim. Elisa remexeu na bolsinha. Procurou, procurou e achou o batom, vermelho, mais vermelho que as unhas descascadas, mais vermelho que o sangue na minha infância. Elisa, por que eu? Por que eu para drag queen? Não poderia ser o João? Ele tem uma namorada. As pessoas não desconfiariam. Ele podia provar, provar que era muito homem. Eu não. Eu pareço um garoto. Um garoto assustado que treme quando você mexe os braços na minha direção. Vamos! Termine logo com isto. Eu não podia dizer. Não podia exigir.

“Pronto, terminei”, ela disse orgulhosa do seu feito, da sua experiência.

Elisa me puxou pelo braço, me guiou ao espelho. João e Ana sorriram, mas não debocharam.

“Agora você é Robert Smith!”, Elisa falou quando vi minha imagem.

Gostei da surpresa, gostei da fantasia. Gostei de como ela arrepiou meu cabelo sem que eu percebesse. Também, aquelas mãos pareciam pequenas almofadas. Pequenas nuvens que se dissipavam depois de serem atravessadas por um avião e retornavam à sua forma anterior. Elisa poderia roubar algo de mim. Talvez já tivesse roubado. Pois, enquanto os centímetros e a estranheza nos separavam, eu sentia um vazio, indescritível como um vazio deve ser.

“Agora vamos tirar umas fotos.”

Fiquei tonto com os flashes. Meu quarto era uma boate de pessoas loucas. Meu quarto era o lugar que tocava a música que ninguém nunca escutou e que ninguém nunca saberia se tinha escutado. Era indecifrável. Elisa era inefável. João e Ana eram essenciais. Não consigo definir suas posições no tabuleiro, mas eles deviam permanecer lá, sempre. Depois de quatro fotos, coloquei a mão em frente à câmera.

“Tudo bem”, Elisa parou.

Tudo bem, eles disseram. Eu não ouvi o que, mas entendi. Trouxeram um jogo de tabuleiro. João e Ana, Elisa e eu. Bons times. A partida começou. Eu não sabia o objetivo do jogo, não conhecia as regras. Só via as mãos de Elisa deslizarem no tabuleiro. Só via suas mãos afortunadas jogando os dados e comemorando depois. Ganhando para nós. Fomos os vencedores. Que bom aquilo ter terminado logo. João e Ana satisfeitos, Eu e Elisa livres. Livres até eles arranjarem algo mais para fazer. Algo mais para esquentar aquela noite, aconchegante, solitária. Aquela noite que parecia ser habitada apenas por nós quatro.

Elisa se enfadou. Por um minuto ela se enfadou. Abriu a primeira gaveta do meu criado-mudo. Lá estavam fotos que eu não sabia onde tinha guardado da última vez. Fotos da minha infância, chorando por não ter ganhado um caramelo, pelo palhaço feio e suado. Chorando por chorar.

Elisa riu do meu choro, riu das empoeiradas fotos polaroid. Meu choro infantil serviu para alguma coisa enfim.

Também cansei. Estiquei-me na cama. João e Ana por sua vez, continuavam sentados na ponta. Continuavam dando saltinhos, radiantes. Elisa viu e reviu todas as fotos, as poucas fotos. Ia se entregando ao marasmo. Foi até a janela, observou a rua por pouco tempo. Ninguém. Ninguém para confirmar se estávamos vivos. Nem gatos saindo das lixeiras.

Elisa esbaldou-se na cama também. Nós dois deitados, como se fôssemos fazer anjos na neve. Venci então o medo da rejeição. Encostei minha cabeça no seu ombro de um jeito mais íntimo. Voltei ao segundo cheiro, o dos cabelos. Cada vez que eu retrocedia a essas experiências aromáticas, algumas reminiscências eram despejadas em rápidos flashes. Pude me ver num dia de sol. Um sol que atravessava os cílios, que chamuscava os olhos. Que fazia o movimento das pessoas mais onírico. Acho que um sol com gravidade zero.

Movimentos lentos, frame por frame. Surreais. De dar enjoo. Belos. Um paradoxo que teimava em existir. Um momento que eu não queria nunca que chegasse ao fim. Atordoado como um morcego de sonar falho.

Seu corpo aproximou-se delicadamente do meu. A luz alaranjada do abajur incidindo no seu rosto como o sol que chamuscara meus olhos. Não enxergava muita coisa. Apenas instantes. Pequenos instantes que restavam no meu cérebro alheio à ordem natural das coisas.

O coquetel desceu goela abaixo cantando indecifravelmente, iluminando a garganta, laranja como o pôr-do-sol, com jeito de cerveja e menta. Seus lábios encostaram-se nos meus. Também almofadados, não como nuvens que se desfaziam. Os sentia lá, intactos, só eles, como se tivessem vida própria. Como se pertencessem a outra realidade. Não sei ao certo o que Elisa pensava naquele momento. Acho que não pensava. Acho que era vazio, assim como eu tinha por dentro. Vazio que clamava por ser preenchido eternamente.

Tudo parou. A música parou, as luzes se apagaram, os pelos se acomodaram e os lábios foram nuvens dispersas de novo. Tudo parou quando o vazio fez-se maior do que meu corpo poderia suportar. O coração parou por um instante de bombear aquele momento. Acordei tragando o vazio. Acordei querendo respirar mais o perfume de Elisa do que oxigênio. Acordei sozinho, entre os meus lençóis. Acordei escutando gatos remexendo as lixeiras e mendigos querendo espeto de gato. Acordei com as fotos arrumadas na gaveta. Acordei sem o amor que vivia na minha cabeça.




A TV exibindo o nada. Sintonizada numa ode ao vazio. Os gatos lá embaixo cansaram do lixo e foram passear. Cada uma das suas sete vidas era mais excitante que a minha. Mamãe tricotava, sonâmbula, o vazio. Tricotava um cobertor eterno que voaria pela janela e daria a volta ao mundo.

Ia à cozinha todas as noites tomar um copo de água com um vácuo no estômago. Todas as noites eu passava pela sala. Esperava alguma sombra se mover. Esperava um sorriso fácil de Elisa em meio à escuridão. Não funcionava muito bem. Os cheiros permaneciam na cabeça, mas não atravessavam o nariz. Uma foto polaroid em branco no criado-mudo, um risco, uma silhueta feminina, as nuvens. Dormia cada dia mais cedo. Quem sabe, amanhã.

Fome de amor


- Aqui estão suas rosquinhas – disse Joaquim, o padeiro, entregando um pacote volumoso com nódoas de gordura a Clóvis, cliente assíduo.

- Obrigado – respondeu. Dirigiu-se ao caixa e pagou.

Clóvis acordava cedo e ia direto à padaria. Aos poucos, extasiado pelos aromas, munia-se de quitutes. Já tinha fritado ovos e bacon, mas precisava de algo doce. Hoje, levava consigo 14 rosquinhas tamanho médio polvilhadas de açúcar.

Seus passos eram lentos. Seu suor, abundante. Clóvis olhava abaixo do pescoço, e por mais refrescantes que fossem as roupas, sempre estavam ensopadas. Ele parecia derreter, mas sem perder o volume.

Não conhecia quase ninguém no bairro. De manhã cedinho, voltando da padaria de seu Joaquim, encontrava com bastante gente que lhe acenava: garotos musculosos praticando cooper, velhas senhoras com suas maquiagens fétidas e cachorros podados. Se lhe associassem a algo, certamente seria às rosquinhas. Clóvis e suas rosquinhas. Pelo menos era algo que valia a pena.

Sentia a caminhada até casa cada vez mais cansativa. A idade chegando – 30 anos comemorados semana passada – e o corpo pesando. O pensamento era paradoxal, mas Clóvis parecia flutuar, como um astronauta no espaço. Astronautas comem pílulas. Ele estava na terra, comia coisas mais densas.

Enxugou com o braço direito as gotas de suor que brotavam de sua testa. O outro braço segurava firme o saco de rosquinhas. Ainda quentes, elas exalavam um aroma irresistível que penetrava em seu nariz.

Ao caminhar, as coxas de Clóvis embatiam-se. Uma querendo ocupar o espaço da outra, elas lutavam por um vácuo no corpo estufado. Um embate de texturas gelatinosas, convulsivas, lembrando os grandes pedaços de carne que balançavam de lá para cá nos ganchos dos frigoríficos.

- Clóvis, clóvis! - disse uma voz vinda de trás.

Uma mão robusta apertou seu ombro e o fez dar meia-volta.

- Há quanto tempo! - continuou o homem. - O que anda fazendo da vida? Ainda trabalhando naquele serviço de atendimento ao consumidor? Por que não aparece para tomarmos uns chopes? E o churrasco? Você ainda faz aquele churrasco divino? Aquilo era mais do que uma arte!

Quem era aquele homem que o encheu de perguntas? Será que ele havia se enganado, confundido Clóvis com algum amigo, algum parente? Não. Pensando bem, ele tinha um rosto familiar. O rosto do homem estava arquivado nas lembranças de anos atrás... mas, quem seria? Claro! Como pôde esquecer da pinta preta, próxima ao queixo, de onde saiam três fiapos tesos.

- É mesmo. Há quanto tempo, Augusto.

A parte difícil ele já passou: reconheceu aquele primo distante com quem fez questão de cortar relações há anos. Agora era pensar em como responder tudo aquilo de forma rápida e evitar mais perguntas. Só o que valia agora era chegar em casa e saborear aquelas rosquinhas crescidas.

- Eu não trabalho mais lá e ando um pouco sem tempo para sair de casa. Agora, se me permite, tenho de ir - Clóvis disse, conciso, e retornou ao seu caminho. Dados alguns passos, Augusto, com um sorriso morno no rosto, falou:

- O que esconde aí, Clóvis?

A pergunta soava mais como um pedido, pois no saco claramente lia-se: “rosquinhas”.

Clóvis voltou, andou lentamente, chegou próximo a Augusto e respondeu:

- São só rosquinhas. Sempre as compro em uma padaria que fica a duas quadras daqui.

- Posso experimentar uma? - disse Augusto, com os olhos fitados no pacote de rosquinhas.

- Sim - Clóvis disse, sem tanto ânimo. Desembrulhou o pacote e aproximou-o de Augusto: - Tome.

Augusto tirou de dentro uma rosquinha, deu uma mordida e disse:

- Huuummm... São maravilhosas! - Lambeu um resto do recheio que se esparramara pelo canto da boca e tornou a olhar Clóvis.

- Eu gosto delas - ele disse.

Clóvis sentia um desejo incontrolável de comê-las, todas! Agora! Mas não podia, aquelas todas não existiam mais. Eram apenas treze, não mais quatorze. Ele também não podia comer tudo, ali, na rua. Tinha primeiro de chegar em casa, no seu recinto sagrado, envolto de aromas, de embalagens, de gostos sintéticos, de latas para se abrir, de comida de ontem, de hoje e amanhã. Comer... Ah! Comer... É a resposta para todos os desejos. Todas as frustrações, deglutidas, engolidas, digeridas. Todos os sabores e prazeres dentro de seu corpo, revolvendo-se até deixá-lo para mais uma carga de tudo isso.

- Foi um prazer encontrar com você, Augusto, mas marquei com o médico daqui a meia hora e tenho de ir.

Não existia médico nenhum, muito menos algum prazer obtido em ter se encontrado com Augusto.

- Ah! Não faz isso comigo não. A gente não se vê há séculos e você vem com esse papo de que precisa ir? Vai fazer o que no médico? Por acaso algum exame de próstata antecipado? Hahaha... – Augusto gargalhou, deixando ainda mais evidente seus enormes dentes, que sempre ficavam de fora da boca.

“Muito engraçado”, Clóvis disse para si mesmo. – Não... Eu só quero ter informações sobre um novo tipo de dieta que ele me indicou.

- Clóvis! Você só pode estar de brincadeira, é isso. Nunca foi de se preocupar com dietas. Gostava de aproveitar a vida, de beber e se esbaldar num churrasco e agora me vem com essa... – Augusto balançava a cabeça em tom de reprovação.

- Eu preciso disso, senão, nem sei mais quanto tempo ainda tenho de vida.

Clóvis não se preocupava exatamente quanto tempo permaneceria vivo, mas sim, quanto tempo permaneceria comendo. Um compromisso inadiável era a desculpa perfeita para, nesse momento, livrar-se de Augusto.

Olhando-o de cima a baixo, até mesmo um imprudente como Augusto percebia ao que Clóvis se referia.

- Não exagera, vai... São só... São só alguns quilinhos. Você compra um daqueles aparelhos de ginástica da TV e perde tudo em uma semana – disse Augusto, tentando amenizar a situação.

- Olha, obrigado pelo conselho – Clóvis disse, olhando nos olhos de Augusto, - mas eu prefiro ter certeza de que... Você sabe... Esses pneuzinhos não estão me afetando tanto assim. Agora, preciso ir.

Clóvis direcionou-se a seu caminho e tornou a andar. Augusto ficou parado, contemplativo, solitário, como se agora Clóvis fosse seu único amigo.

- E a Soninha? – Augusto gritou, desesperado por mais alguns instantes de conversa.

Clóvis voltou para responder:

- O que tem a Soninha? – Perguntou, ríspido.

- Sabe, a Soninha, aquela garota com quem você dizia que costumava sair... – Augusto acrescentou, como se tentasse ganhar tempo para dizer algo.

- Não sei mais dela.

Clóvis realmente não sabia nada sobre Soninha e nem nunca soube. Soninha nunca existiu. Era só uma desculpa usada por Clóvis para ludibriar seus amigos e mostrar que ele fazia pelo menos algum sucesso com as mulheres.

- Ah, que pena! Tem seu telefone? – perguntou excitado – Porque, se você não se importar, talvez eu possa marcar algo com ela, um jantar, ou um cinema. Sempre me falou tão bem dela que fiquei curioso. Mas claro, tudo, se você não se importar...

Clóvis meneou a cabeça, sugerindo que não se importava.

- Eu juro que não me importaria, mas infelizmente não tenho mais o número de telefone dela. Fizemos questão de cortar qualquer tipo de relação na última vez que nos vimos. Agora é sério, Augusto, tenho de ir.

Augusto agradeceu a “boa vontade” de Clóvis e deu-lhe um abraço brusco, fazendo-lhe derrubar o pacote de rosquinhas.

- Não, não tem problema – Clóvis adiantou, apanhando o pacote do chão e dando uns tapinhas para tirar a areia.

Os dois finalmente tornaram a seguir seus rumos. Clóvis, aliviado por ter se livrado de uma das pessoas mais inconvenientes que ele já conhecera.

“Lar, doce lar”, ele pensou ao entrar e fechar a porta de sua casa.

E não era força de expressão. Era mesmo um lar com açúcar para todos os lados. Não só açúcar, mas, corantes, aromas, conservantes, sabores artificiais e tudo mais que engordasse e fizesse mal.

Clóvis pegou o controle da TV, que tinha os botões todos desbotados, engordurados pelas suas mãos sempre impregnadas de comida, e ligou a televisão. Nada de atrativo no ar, porém, sempre era mais prazeroso comer em frente à tela da TV. Esse era o ambiente ideal para se acomodar, relaxar, afundar na poltrona e ser acometido por uma sonolência que não o deixava dormir, somente administrava um estado apático que ia se desdobrando em uma linha de tempo inimaginável. A passividade ia se multiplicando, se abrindo, como um leque. Tomar qualquer atitude, que não fosse comer e manter os olhos entreabertos, era sofrivelmente difícil. Por isso mesmo, para desocupar a bexiga, ele esperava horas e horas. Já passou por sua mente usar uma sonda para as necessidades fisiológicas. Acabou desconsiderando esse pensamento bobo.

Na sala, havia um grande espelho arredondado, com uma bela moldura de madeira, talhada à mão. Herança de sua bisavó. Sem conseguir distrair-se em frente à televisão, Clóvis olhou para o lado, viu parte de seu rosto refletida no espelho. Ele não lembrava ser tão rechonchudo assim. Afastou-se mais, com o intuito de se ver completamente. As maçãs do rosto arredondadas e lustrosas brilhavam com o pouco de sol que entrava pelas frestas da janela. Clóvis chegou mais perto, e mais perto... e mais perto. Parecia enorme. Cada vez mais enorme, ao contrário de seu pênis. Ele lembrou-se, sem complexo algum, mas isso ocorreu em sua mente. Não pôde evitar. Baixou as calças. Lembrou-se há quanto tempo não fazia sexo, há quanto tempo alguém não o desejava. Procurou, espremendo a mão por entre os pelos pubianos até achar o pênis. Clóvis não tinha uma boa ferramenta, mas também era mais romântico do que isso. Até considerava o sexo um supérfluo.

Vestiu-se e foi ao computador. No lixo eletrônico, havia um e-mail, uma dessas mensagens em massa, sobre amor. Falava de pessoas solitárias encontrarem outras pessoas solitárias, marcarem encontros, terem uma vida social e afetiva normal. No e-mail também, uma montagem malfeita, com galãs de sorrisos esbranquiçados e lindas mulheres também sorrindo.

Clicou no centro, em um dos casais felizes da montagem. Um site se abriu e ele entrou no chat. A maioria dos participantes eram homens, que, empolgados, falavam sem parar. O texto corria rápido na tela e tudo formava uma grande confusão visual.

Lá pelo final da lista de usuários, Clóvis encontrou uma moça que usava o apelido de “Patrícia Abajur”.

- Patrícia Abajur? – perguntou ele, aproveitando a deixa para iniciar uma conversa.

- Sim. É apenas um trocadilho, no sentido que eu passo todo o tempo acessa...

- Engraçado o seu trocadilho – disse, enquanto fora do mundo virtual tudo transmitia o mais absoluto e inabalável silêncio.

- Talvez ele seja mais enigmático do que engraçado, já que você é a sexta pessoa que me pergunta isso hoje.

Clóvis estendeu-se a pensar no que iria responder já que seu pressentimento dizia que a conversa poderia tomar um rumo não muito confortável.

- Me desculpe – Pronto. Era simples e objetivo. Mostrar que sabia se retratar, mesmo tratando-se de uma futilidade, era um bom sinal.

A conversa foi seguindo, morna, constante, mas ainda com um fio de esperança unindo as palavras dos dois. Patrícia estava enfadada, porém, dessa vez, não encontrou pela frente um maníaco sexual.

As velhas e redundantes perguntas de sempre brotavam sem sentido algum. Eram apenas formalidades esperando algo mais interessante, só que Clóvis insistia:

- O que você costuma fazer pra se divertir?

- Ah, não são muitas coisas, mas quando tenho tempo, costumo ir a algumas boates aqui por perto – respondeu Patrícia, quase de imediato.

Antes que Clóvis pudesse formular uma próxima pergunta, ela disse:

- E você, o que faz para se divertir?

“Eu, o que eu faço para me divertir?”, pensou. “Hum... São tantas coisas, afinal, eu sempre estou de folga.” “O que eu posso dizer que faço para me divertir? Videogame, não, não... Pôquer, também não... Nem dormir, nem praguejar contra os vizinhos. É mais difícil do que eu imaginava... Já sei! É isso!”.

- Eu sempre vou a alguns restaurantes que conheço. Gosto de experimentar as novidades – escreveu com confiança.

- Então você se interessa por gastronomia?

- Digamos que sim.

Isso significava ganhar alguns pontos positivos com Patrícia. Pelas experiências que tivera na vida, ela preferia homens com sensibilidade na cozinha. Quase sempre eles a entendiam melhor e é fato que ela praticamente venerava os que chegavam a lhe oferecer pratos requintados por eles mesmos preparados.

- Então eu posso passar na sua casa por volta das nove da noite?

- Combinado. Às nove então – confirmou Clóvis.

No primeiro contato virtual que tiveram, os dois já fizeram questão de marcar um encontro. Ambos não se mostraram como realmente são. Suas fotos ficaram omissas, enquanto as palavras e o mistério de imaginar quem se encontrava por trás daquelas mensagens ditavam o tom daquela conversa.

Clóvis mentiu copiosamente, tomando de exemplo para sua aparência fictícia os modelos másculos, esbeltos e de sorriso reluzente do e-mail que recebera. Patrícia forjou a descrição de sua aparência folheando rapidamente algumas revistas voltadas para o público feminino, recheadas por lindas celebridades de biquíni, exibindo suas boas formas, que se tornavam ainda mais atrativas com o reparo de imperfeições através do Photoshop.

Os dois mentiram. Clóvis mentiu para Patrícia, Patrícia mentiu para Clóvis. Absorvidos pelo próprio escapismo, não se deram conta que também poderiam estar sendo enganados.

Tudo se manteve como dito. Dez minutos para o excepcional encontro. Clóvis terminava de arrumar a mesa da sala, dispor os pratos e os talheres. Jogou pela janela duas rosas murchas que permaneciam num vaso sobre a mesa e as substituiu por falsas – flores de plástico que imitavam margaridas. Checou o cheiro das axilas, o excesso de suor. Mais uma vez, foi ao espelho. Deslizou a mão sobre a velha moldura de madeira do espelho, como se aquilo fosse um amuleto da sorte.

Enquanto isso, Patrícia já havia terminado de se aprontar. Dessa vez, fora mais rápida do que o de costume, porém, mais caprichosa. Em frente a uma pequena penteadeira que, em relação ao seu corpo, parecia ser feita para anões, ela virou o pescoço, jogou o cabelo para o lado e tirou o excesso de batom. Apagou a luz e voltou a ligar para ver que horas eram num relógio fixado muito alto, quase tocando no teto. Os ponteiros mostravam oito e quarenta e cinco da noite, entretanto, aquele relógio estava atrasado. No horário, já passava de nove da noite.

Clóvis, esperando ansioso para abrir a porta e conhecer a linda patrícia que não existia, parecia bastante temeroso. Fechava os olhos e imaginava aquela mulher perfeita, de olhos que pareciam mais esmeraldas, cabelos sedosos, esvoaçantes e vivos, de lábios macios, fartos e sensuais, da pele límpida como o mais alvo leite e tremia-se dos pés à cabeça só de pensar. Principalmente quando pensava sobre o constrangimento da iminente rejeição que ele poderia sofrer por parte dela. Que fosse sorriso, rejeição, e um pedido de desculpas como na conversa anterior àquela situação. Que quando ela o visse, não sentisse náuseas piores do que quando se farta de comida em alto-mar e se vomita a cada oscilação da navegação. Como fazia sempre, Clóvis pensou longe. Imaginou uma cena perturbadora: a campanhinha tocava, ele corria em disparada para atender. Assim que abria a porta, era atingido por um jato multicor, viscoso e ácido, saído direito dos lábios voluptuosos de Patrícia. Ela o olhava por alguns segundos naquela situação grotesca, como quem sente pena, não por aquilo ter ocorrido, mas por alguém, como ele, Clóvis, ter nascido, e vai embora, com o batom intacto. Clóvis, alucinado e agindo como um animal, passa a lamber-se desesperadamente, sorvendo aquele fétido vômito que ensopava toda a sua roupa.


Patrícia percebeu que os ponteiros do relógio não se mexiam mais.

- Maldito relógio! – ela gritou, e foi correndo procurar o de pulso.

Quando chegou à sala, o botão que fechava a calça arrebentou-se e saiu quicando pelo chão escorregadio até esconder-se embaixo do sofá. Patrícia não percebeu e acabou procurando por toda a sala, até mesmo em um quarto contíguo, na esperança de encontrá-lo e pô-lo de volta no seu lugar. Só assim ela poderia conseguir dar um jeito naquela calça, que agora estava escandalosamente aberta. Procurava rastejando, de quatro, com seus seios descomunais quase arrebentando o sutiã e todo o resto de seu corpo morbidamente obeso sofrendo a lei da gravidade. Em pouco tempo, estava exausta, gotejando suor pelo chão. Foi aí que ela lembrou-se da caixinha de costura. Levantou-se, foi ao quarto e a tirou da penteadeira. Mas lá só havia alguns trapos, linhas de costura e agulhas velhas. Patrícia desejava muito usar a calça nessa noite, sobretudo porque a grande maioria de suas roupas já não lhe cabia mais. “Como eu pude não perceber isso, como eu pude?!” repetia para si mesma, a todo o momento. A solução desesperada que ela encontrou era: engolir a barriga.

Patrícia inspirou com a força que podia, até sentir dor nos pulmões. Manteve presa a respiração, e costurou, costurou o mais rápido que pôde o botão daquela calça. Deu voltas e voltas com mais linha para assegurar que aquele constrangimento não lhe aconteceria logo mais. Com a face arroxeada, ela finalmente solta o ar de uma vez e se repreende, no mesmo instante, sendo mais comedida, já que ainda não estava tão convencida sobre a segurança da calça.

Clóvis, já não mais atordoado pelo seu delírio pré-encontro, lúcido e menos nervoso, se encontra bastante indignado. Sente-se humilhado, passado para trás, já que tem a plena certeza de que Patrícia o enganou. Aquela ansiedade toda o matava, o matava a cada segundo. Patrícia não deveria ser tão ingênua assim em achar que encontraria um cara perfeito num bate-papo de internet. Era óbvio que não. Como as outras, ela só desejava mesmo lhe passar a perna, pregar mais uma peça e tirar proveito disso. Deixar o gordinho, esperando em casa. Deixar o gordinho fazendo receitas culinárias de revistas. Deixar o gordinho apreciando aquele banquete e sem poder experimentar um pouquinho sequer. Clóvis deu um soco no ar. Comemorava a bela ideia que acabara de ter. E por que não? E por que não comer aquilo tudo já que a vadia não ia mesmo aparecer. Era o pensamento que lhe seguia, contudo, algo ainda refreava seus instintos. Foi apenas questão de tempo para que esse algo dissesse adeus. Clóvis rendeu-se ao banquete que havia preparado. Não era a melhor coisa que comera na vida, mas, ainda assim, era muito, era quente e descia pela garganta cheio de volume. Em pouco tempo, fartou-se, porque. em pouco tempo não sobrara mais nada. Recostado no sofá da sala e olhando fixamente a mesa revirada, Clóvis parece ter acabado de atingir um orgasmo. Seu prazer é tão imenso e aterrorizante que seus lábios parecem carregar um sorriso, involuntário que se convulsiona por instantes. Naquele momento, ele estava totalmente entregue, desprovido de qualquer força para tirá-lo dali. Certamente iria passar a noite naquele local, estendido no chão, não fosse o toque estridente da campanhinha.

“Meu Deus! Meu Deus!” ele gritou com a mão frente à boca.

Clóvis estava desesperado, descabelado, ensopado. Levantou-se bruscamente quase desfalecendo e correu ao espelho. Na esperança de contornar a situação, ele abotoou como pôde a camisa e tentou corrigir a posição da gravata. Passou rapidamente a mão entre os cabelos e borrifou um perfume velho na nuca, no peito e nos braços. Voltou para sala gritando: “Já vou! Já vou!” e recolheu os pratos e talheres de cima da mesa. Clóvis olhou para porta, respirou fundo e enxugou pela última vez o suor persistente em sua testa. Ainda havia uma esperança. Ainda podia ser um inquilino para reclamar de algo. Ainda, quem sabe, era tempo de ele lidar com o de costume.

- Olá! – ansiosa, Patrícia disse, com a porta por ainda se abrir totalmente.

E Clóvis terminou de abrir a porta.

- Olá! – apenas replicou.

Ela sorriu com uma cara de quem acaba de sofrer uma tremenda frustração.

- Você deve ser a Patrícia – disse Clóvis.

Era claro que sim. Claro que era Patrícia. Só mesmo o pensamento sobre o possível inquilino para fazê-lo perguntar isso.

- Sim, sou eu – e ela perguntou em pensamento: “Você deve ser o Clóvis, certo? Porque não era nada do que eu imaginava”.

O choque ocorrido os deixou perplexos. A surpresa em descobrir a mentira do outro, fez com que a situação incomodasse mais ainda. Clóvis não queria uma gorda. Patrícia não queria um gordo. Por mais que os dois fossem e soubessem como é não fazer parte do padrão de beleza imposto pela sociedade, eles não se viam como gordos. Não carregavam consigo a imagem da qual os outros tinham deles.

Clóvis, mesmo decepcionado, tentando se mostrar gentil, disse:

- Por favor, entre.

- Não – disse Patrícia, com a cara cerrada.

- Mas... – Clóvis balbuciou, enquanto tentou segurar seu braço.

- Eu não posso aceitar o convite de alguém que mente tão descaradamente.

- Eu, eu minto descaradamente?! Primeiro aceite os fatos. Nós dois enganamos um ao outro. Eu só queria alguém que... Alguém que me fizesse feliz, que entendesse meus sentimentos e que gostasse de mim como eu sou por dentro.

Era um clichê. Patrícia já estava cansada de ouvir coisas daquele tipo nas novelas. Mas algo lhe comoveu. Algo com um quê de sinceridade.

- E quem lhe disse que não é esse também meu pensamento?

Foi aí que ela entrou. Deu dois passos e entrou. Sentiu ainda o aroma da comida que Clóvis havia feito e que não mais estava lá. Aproximou-se de Clóvis e largou suas mãos em seus ombros. Os dois entreolharam-se ardentemente. Os joelhos de Clóvis tremiam, mas Patrícia não notou. Ele pensava sobre o quanto ela era feia, mas, mesmo assim, já sentia uma estranha atração unindo seus corpos. De nenhuma parte existiam mais palavras para narrar aquele momento. As bocas se tocaram, os corpos sucumbiram e de olhos fechados, os dois pareciam dançar valsa, pura e sincronizadamente. Sem perceber, já estavam do lado de fora do apartamento. Aquela sensação única de arrebatamento só podia ser classificada como amor. O amor chegou, como que varrendo toda a frustração perante à vida durante anos e anos embora. O amor de peso – não só como força de expressão – vendou-lhes de uma tal forma que não fora possível ver a escada nem segurar em seu corrimão. Patrícia embaixo, Clóvis em cima. Isso teria duplo sentido, não fosse o momento tão sublime. Olhos vidrados, de morto. Um fiapinho de sangue e saliva escorrendo pelo canto da boca. Praticamente estranhos, e agora, ligados eternamente. Seriam descobertos amanhã quando o faxineiro levasse seu esfregão até ali.