terça-feira, 9 de março de 2010

Curto


Os bracinhos tão curtos e abraçando o ar. Os vizinhos veem aquilo e não dão a mínima importância. Rafaela tem oito anos de idade e precisa mesmo brincar. Seu sonho era ter um gatinho de estimação, mas dá muito trabalho.

O abraço que Rafaela dá no ar, mesmo com os bracinhos curtos e toda fragilidade infantil, seria capaz de sufocar um adulto, de fazê-lo virar criança e cair em prantos. Ela abraçava mesmo, sem dó nem piedade, sem ligar pra mocidade. E quem disse que era só ar e partículas de poeira? Podia não acertar de primeira, mas olhando bem de perto e sendo um tanto esperto, dava pra notar as sobrancelhas, os lábios avermelhados e o cabelinho penteado de lado. Ah! Quer saber? Dane-se se ninguém notava! Rafaela abraçando era o que importava. Ela não pensava em seu próprio umbigo, e o amigo pra ser amigo, tinha de rimar com ela, por isso o menino se chamava Sentinela.

Sentinela carregava na cintura a arminha de brinquedo, podia parecer inofensiva, mas guardava um segredo que enchia todos de medo: um disparo e era fatal, preparava-se o final. Por isso, todos fingiam que Sentinela nem existia, era o medo de se complicar e depois explicações ter de dar.

Rafaela e Sentinela eram bons amigos, uma amizade quase colorida. Culpa dos gizes de cera, que ficavam dando pinta, sem eira nem beira, convidando os dois a rabiscar qualquer parede de primeira.

Rafaela era tão fiel, que quando chegava o seu Emanuel e via aquela danação, a parede mais do que estragada e os gizes quebrados no chão, não poupava aquela bronca. “Sentinela só ronca”, pensava Rafaela. Escutava tudo caladinha, sem dar um pio, mas se já soubesse falar isso diria puta que pariu!.

Os dois já passaram por poucas e boas. Teve o dia que resgataram o Quicky Bunny daquelas corredeiras de chocolate e o devolveram são e salvo à cachoeira de morango. Assistiram juntos “A Hora do Espanto”. Dormiram às quatro da manhã e aprenderam que não precisam escovar os dentes, é só comer maçã. Rafaela desastrada verteu leite pelo nariz, Sentinela que não pensa em nada queria tapar a narina com giz. Certa manhã, Sentinela amanheceu com febre, Rafaela pensou em fazer greve até que ele melhorasse. Ela pegou o termômetro escondido e pôs embaixo do seu braço, mas afundou, caiu no chão e não sobrou um pedaço.

Deitados num gramado do quintal eles observavam as nuvens que pelo céu passavam. E eram tantos formatos, que o mundo todo parecia estar lá. O mundo de baixo, do gramado, e o mundo de cima, do céu. O verde e o azul. O mundo das ideias soprando. Até Sentinela Rafaela viu, numa nuvem que tinha mais ou menos o tamanho de outras mil.

Tudo eles topavam, e não havia perigo pequeno ou grande, mas quase todos os dias tropeçavam numa pedra do tamanho de um elefante. Era quando Rafaela tremia e segurava a mão flutuante de Sentinela, sem saber que ele tremia mais do que ela. Aparecia então, olhando pela janela, aquele velho de barba por fazer, de manchas no braço, que se ela soubesse dizer, diria que lhe dava asco. O velho cuspia um catarro verde, que às vezes grudava na parede, encobria seu giz de cera. O velho só saía para a feira, voltava com alguns poucos legumes e um dia trouxe uma peneira. Sentinela e Rafaela ficavam só de olho, de guarda, espiando feito onça, temendo que dentro da sacola houvesse uma criança.

Mal sabiam eles que o velho tinha um nome, que tinha netos também, e que um dia, quando criança, andou de trem – era o sonho de Rafaela e Sentinela. Pois é. Eles não imaginavam aquela figura com sapatinhos pequenos, com olhar mais sereno, sem barba de rabugento. O velho, quando criança, empinava pipa, sobia na pia, assobiava todo dia, jogava bolinha de gude, tomava banho em açude, rodava pião e levava pontos na mão.

O velho não era mais criança, e por mais experiente que fosse, nunca poderia prever as intempéries do coração. Na rua deserta, só Rafaela e Sentinela. Os dois com um olhar assombrado. O velho em seu pior estado, revirando os olhos e desfalecendo. O que ele está fazendo?, Rafaela perguntou. Curiosos, aproximaram-se, abriram a porta e fitaram aquele corpo estrebuchando no chão. Bateu na cabeça de Rafaela o número da emergência que passava na televisão. Três dígitos.

Foi ao telefone público, mas o bracinho não alcançava direito. Sentinela estufou o peito e a carregou nos ombros. Agora ela era maior do que qualquer um. Falou com uma moça do outro lado da linha e explicou que o velho caiu e pum!

Uma vida então foi salva, naquela manhã tão alva. Alguém deixou de morrer, graças a outro alguém que nem existia. Mas o mais importante de tudo, era que Rafaela não sabia.

Dedicado a Rafaela, que graças à sua existência me trouxe inspiração para este conto e, mesmo longe, sempre me incentiva. Obrigado.

3 comentários:

Rafaela Gimenes disse...

Não acredito! Sério, não acredito que você colocou aqui. Já faz tanto tempo, né? Que saudade!

Ah! Brigada por tudo, Igres. Cê é mesmo foda demais. Relendo o texto, só me deu saudade. :)

Brigada mesmo!!

rod. disse...

Lindo! Lindo demais, moço. Puro sentimento. Epifanias pelos poros. Bravo! Rodrigo

Jayane Ribeiro disse...

Algo sem miséria numa noite friorenta. Rafaela parece saber tanta coisa. E todos tem amigos imaginários.