sexta-feira, 5 de março de 2010

Frígida


Oi, oi meu amor. Você demorou muito hoje, não foi? Está com calor? Choveu a tarde inteira, mas eu estou sentindo calor. Olha, minha camisa está ensopada. O ventilador está quebrado, fica fazendo um barulho estranho e a hélice para de girar. Espero que não se importe com o calor, baby. Você lida bem com o calor. Nunca te vi suar, nunquinha, nem uma gotinha escorrendo por essa testa linda. Você lida bem com as temperaturas, as altas, as baixas. Anda nuazinha no frio. Eu acho tão bonito. Sinto orgulho. Você só fica quente quando a gente quer, não é? Você ferve, mas não sua nada, já disse.

Ai, ai, querida! Lembra-se desta música? Quando a gente se conheceu ela tocava. Recordo-me bem daquela tarde, segunda-feira, eu comendo um sorvete. Não estava nada bom. Nada estava bom. O sorvete tinha um gosto estranho, as pessoas me olhavam torto e eu tinha sido assaltado. Só havia dinheiro para o sorvete porque escondia, por precaução, alguns trocados dentro da meia. Uma gota daquele maldito sorvete sujou a minha camisa, minha camisa branquinha. Tentei limpar com um guardanapo, mas só espalhou a sujeira. Era tão visível. Quando eu levantei o rosto, a primeira coisa que vi foi você. Estava olhando pra mim, descaradamente, com um sorriso que ia de uma ponta a outra do rosto. Nunca garota nenhuma tinha olhado assim para mim. Era penetrante, sabe? Eu tentava desviar, não era capaz de olhar para alguém tão bonita assim como você. Mas me vinha uma vontade, uma vontade imensa de olhar mais uma vez nos teus olhos antes de pagar aquela porcaria de sorvete. E quando eu olhava, ah! aquele sorvete tinha o melhor gosto do mundo. Quando eu olhava, ah! seus olhos estavam lá, como pedras preciosas ainda não descobertas por ninguém. Ah! quando eu olhava... eu parecia um gatinho trêmulo.

Levantei-me para pagar o sorvete, me apoiei na mesa, trêmulo, trêmulo, um pintinho trêmulo. Paguei. Meus últimos trocados, minha última chance de continuar olhando para você. Fui-me, ou melhor, estava indo, e você olhando, olhando. Era agora ou nunca. Eu sabia, sabia que você era meu amor, amor de toda a vida. Não ia perder aquela chance, por mais fraco que eu fosse. Você não me abandonou, com aquele olhar cintilante, estático, seus olhos só em mim. Guiou-me com os olhos que não se mexiam. Eu fui, segui sua direção, meu coração. Encostei meu coração na vidraça. Era a última coisa que nos separava, e eu queria sentir aquela última coisa, para depois dizer adeus. Segurei-te pelo braço, e foi quando eu soube que tudo aquilo era real. Não pude conter meus dedos fracos, meu suor escapando pelas fracas mãos. Amor, você não disse uma palavra sequer, porque bastava olhar, e isso você faz bem. Diz muito com os olhos.

Desculpe-me, haha, pelo meu romantismo barato. Sei que às vezes você não gosta, não fala nada, fica aí, caladona, carrancuda. Mas eu sou assim, amor, lembro de cada instante teu, todos os dias que estou do teu lado.

Sua mão está descascando? Espera, me deixa ver de perto. Sim, está sim. Amor, você tem vitiligo? Haha. Brincadeira! Amanhã compro uma lata de tinta.

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